Incentivo burocrático

JOÃO CÉSAR DAS NEVES
DN2012-04-16

Um facto surpreendente da democracia é a confiança implícita do público na capacidade do Estado em resolver os problemas sociais. Essa confiança é sucessivamente desiludida, pelo fiasco de sucessivos Governos mas, face ao engano, os eleitores limitam-se a transferir a fé para o executivo seguinte, sem nunca perder a esperança de algum vir a ser eficaz, apesar da evidência esmagadora em contrário. A ilusão nasce da ignorância generalizada da regra mais elementar da política: os ministérios são sempre os menos interessados em ter sucesso. Não é maldade. É incentivo.
Um pequeno exemplo mostra esse efeito. Suponha por milagre que Portugal elimina a pobreza. Isso significaria o fim de largas secções do Ministério da Solidariedade, a redução drástica da Segurança Social e de múltiplas instituições de combate à miséria, com forte perda de influência e desemprego de vasto número de burocratas. Veja, pelo contrário, que o problema da pobreza se agrava em Portugal. Evidentemente que o ministério não é acusado desse mal e, em vez disso, ganha muito mais orçamento, influência e pessoal. Sendo assim, qual é o interesse da instituição em melhorar o problema que lhe está entregue? Todos os benefícios lhe vêm de ele agravar esse drama social.
O que é verdade na pobreza aplica-se igualmente à educação, saúde, polícia, etc. Cada um desses departamentos do Estado vive de lidar com os males sociais e ganhará peso e importância quando eles aumentarem, entrando em decadência se a sociedade vencer os seus problemas. As Forças Armadas andam em baixa por falta de guerras, enquanto o Ministério das Finanças ganhou poder absoluto precisamente pelos enormes disparates da política orçamental recente. Nas empresas, se somos mal servidos mudamos de fornecedor. No Estado, o fiasco aumenta o poder do azelha.
É verdade que o ministo, cujo mandato é curto, tem todo o interesse em mostrar serviço. Afinal é ele, e não o ministério, quem será julgado e sofrerá o castigo de as coisas correrem mal. Aí operam duas outras regras essenciais do processo governamental, também geralmente ignoradas. A primeira é que o maior adversário do político é a burocracia, e vice-versa. A segunda é que, dos dois, esta manda muito mais que o primeiro. Tudo o que o Governo faz realiza--se através do aparelho administrativo, que por isso tem poder total. Muitos ministros saíram do mandato criticados por incapacidade. Mas aqueles que afrontaram a sua máquina foram os que acabaram a carreira ridicularizados, humilhados, desfeitos. Alguns nem chegaram a perceber o truque, de tal forma o mecanismo se lhes colou à pele.
Este é o quadro geral do processo político em todo o lado. As sociedades mais bem sucedidades são aqueles que confiam em si próprias para tratar dos problemas, pedindo ao Estado que cumpra apenas funções de coordenação, estabilidade, justiça e equilíbrio, sem se ocupar de funções que não lhe competem. Infelizmente, a ilusão do paternalismo é poderosa, e mesmo as culturas mais abertas e livres sofrem uma erosão de autonomia.
Se este é o quadro geral existem excepções curiosas. A situação portuguesa recente constitui um caso particular muito interessante de suspensão da primeira regra, com temporária coincidência entre os interesses social e administrativo. De facto nos últimos anos os nossos ministérios cresceram em poder e dimensão enquanto a situação nacional melhorava, tudo graças à dívida externa. Como não há almoços grátis, há um ano surgiu a inexorável conta, o que inverteu a circunstância.
Perante a emergência financeira tudo mudou mas, paradoxalmente, repete-se pontualmente a coincidência de interesses, agora por razões opostas. Vivemos uma oportunidade rara pois, por uma vez e durante uns meses, as máquinas burocráticas têm mesmo de procurar resolver eficazmente os problemas que lhes estão entregues, sob pena de o País falhar e todos cairmos no abismo. Isto é apenas a tradução administrativa de uma velha regra biológica: nada une tanto os organismos como o perigo de morte.

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