Existe uma crise da democracia?
Público 2012-04-30
João Carlos Espada
As democracias reforçam-se através de parlamentos que são capazes de absorver e domesticar os populismosEstas foram algumas das questões cruciais propostas - em surpreendente sintonia - por dois conferencistas convidados para o Colégio da Europa, em Varsóvia, na semana passada, pela cátedra Geremek. Os oradores foram o norte-americano Marc F. Plattner, director do Journal of Democracy e vice-presidente do National Endowment for Democracy, e o britânico Raymond Plant, professor do King"s College, Londres, e par trabalhista na Câmara dos Lordes. As palestras fazem parte de uma série sobre "Civilização Europeia" promovida pela cátedra Geremek ao longo de três anos. Por coincidência de calendário, tiveram lugar em dois dias consecutivos, quinta e sexta-feiras, tendo cada orador acedido a assistir à palestra do outro. Ambos ficaram surpreendidos pela sintonia dos seus próprios argumentos, embora à primeira vista falassem de quadrantes políticos diferentes.
Marc Plattner, que falou na quinta-feira, apresentou uma elegante retrospectiva do que chamou a "odisseia europeia com a democracia no século XX". Depois de passar em revista a trágica pulsão totalitária da Europa com o nazismo e o comunismo, Plattner prestou homenagem à resistência polaca que enfrentou os dois totalitarismos e foi crucial para a queda do comunismo.
Mas, quando a palestra parecia ir terminar num final feliz, Plattner começou a alertar para uma mal-estar que estaria a ocorrer nas nossas democracias triunfantes, sobretudo na Europa. Esse mal-estar manifestar-se-ia designadamente no crescimento eleitoral de partidos extremistas. E isso poderia resultar, propôs ele como hipótese explicativa, do apagamento das diferenças políticas entre os partidos de centro-direita e centro-esquerda.
Segundo Plattner, este apagamento poderia ser fruto do esgotamento das políticas assistencialistas da esquerda, as quais tinham conduzido a um endividamento público insustentável. Perante esse esgotamento, as esquerdas democráticas não tinham realmente propostas alternativas e, por isso, estavam a abrir caminho ao crescimento de populismos antidemocráticos.
Raymond Plant, que falou na sexta-feira, concordou em boa parte com o diagnóstico de Marc Plattner sobre o apagamento das diferenças entre o centro-esquerda e o centro-direita. Mas avançou com a explicação alternativa de que isso se devia, sobretudo na zona euro, à tentativa de constitucionalizar assuntos de política orçamental que deviam ser deixados à rivalidade partidária.
Plant condenou então o novo tratado entre 25 membros da União Europeia que prevê a constitucionalização de limites aos défices orçamentais. Observou com ironia que isso tornaria inconstitucionais as políticas keynesianas seguidas no pós-guerra por quase todas as democracias ocidentais, bem como as próprias políticas de corte nos impostos seguidas por Reagan e Thatcher na década de 1980.
Se a política orçamental for retirada do debate parlamentar, perguntou Plant, o que resta para debater nos parlamentos? A resposta, sugeriu, reside naquilo que estamos a observar na Europa: o crescimento de temas bizarros relacionados com a identidade nacional, o proteccionismo e crítica azeda das elites - financeiras, em primeiro lugar, mas depois também político-partidárias e empresariais. Não são estes os temas preferidos dos vários extremismos antiliberais?
Um silêncio profundo dominou a audiência por alguns instantes após ambas as palestras. Depois irromperam dezenas de perguntas, num turbilhão que alterou os horários previstos para o encerramento.
No final, uma conclusão prudencial parecia emergir: é preferível trazer para o debate político civilizador dos parlamentos tudo o que esteja a ser debatido na rua, por mais desagradável que isso possa parecer. As democracias reforçam-se através de parlamentos que são capazes de absorver e domesticar os populismos, não através da sua exclusão por inconstitucionalidade.
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