Trabalhar, poupar, investir

Público 2011-06-13 João Carlos Espada
Se quisermos sair da gravíssima situação em que nos encontramos, é preciso desfazer as dicotomias dogmáticas

Qualquer que seja a composição do novo Governo que o dr. Passos Coelho, com toda a legitimidade que as eleições lhe deram, venha a formar, seria útil que não ficasse prisioneiro das fatais dicotomias dogmáticas que tendem a ser tão apreciadas entre nós. Essas dicotomias colocam o passado em oposição ao futuro, a tradição em ruptura com o progresso, a nobreza dos valores morais em oposição ao materialismo dos interesses, o social em oposição ao individual.
A mais fatal dicotomia que envenena a nossa cultura política nacional é, em meu entender, a que opõe o interesse comum ao interesse individual. É um equívoco colossal, com consequências colossais. Gera uma desconfiança profunda em relação ao desejo das pessoas comuns de elevarem a sua condição através do esforço, da disciplina, do empreendimento. Concomitantemente, alimenta uma presunção benevolente em relação à despesa pública, que é sempre justificada em nome dos valores mais altruístas e do interesse do todo, contra o das partes.
Mas há uma diferença colossal entre a despesa em nome do público e a despesa ao serviço do público. A utilidade social desta última pode medir-se pela satisfação de pessoas concretas, que livremente escolhem um bem ou serviço. Se não o escolherem, os produtores terão de ajustar a sua oferta às preferências do público. E, através dessa "mão invisível", os produtores são levados a servir o interesse dos consumidores, ao mesmo tempo que procuram melhorar a sua própria condição.
Esta tensão entre oferta e procura livres gera uma disciplina pessoal, que não é imposta por ninguém em particular, mas que exerce o seu efeito educativo de forma muito mais efectiva do que qualquer disciplina que resultasse de um código central emanado de algum decisor central. Ela educa-nos a todos numa disciplina ao serviço do bem comum. Ela ensina-nos que o caminho para a melhoria da condição de cada um requer virtudes sociais: trabalhar, poupar, investir, servir os outros tentando melhorar a nossa própria condição. Eis, como diria Edmund Burke, a beleza surpreendente do mundo livre.
Mas, a acreditar no discurso político ainda dominante em Portugal, parece que nós preferimos acreditar nos caprichos dos homens, em vez de na ordem e na disciplina da liberdade. O resultado está à vista: a ameaça de bancarrota e a ameaça de saída do euro. É uma situação gravíssima e só um grande esforço nacional pode afastar-nos do abismo. É preciso cumprir o acordo assinado com a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional. Esta é a saída que ainda temos, embora seja muito exigente.
Mas não nos enganemos. Se quisermos sair da gravíssima situação em que nos encontramos, e sair de forma sustentada, como agora se diz, é preciso desfazer as dicotomias dogmáticas, sobretudo a que opõe bem comum a esforço de melhoria individual. Se a desfizermos, e quando a desfizermos, poderemos então observar e desfrutar do milagre da liberdade. Poderemos, nessa altura, ver emergir uma surpreendente disciplina pessoal, voluntariamente assumida, ao serviço do bem comum. Deixaremos, nessa altura, de ser humilhantemente descritos pela imprensa internacional como "o país mais pobre da Europa ocidental que nos últimos dez anos se arrastou na cauda do crescimento europeu", uma expressão recorrente, por exemplo, no Wall Street Journal Europe.
Poderemos então ver as pessoas a serem voluntariamente pontuais, vestirem-se condignamente para atenderem os seus clientes, atenderem os telefones quando eles tocam em vez de os deixarem tocar, responderem aos mails e à cartas atempadamente, reclamarem polidamente os seus direitos sem abusarem deles, colocarem os seus deveres à frente dos seus direitos, pagarem lealmente os seus impostos quando eles não forem devorados pelo despesismo corporativo, respeitarem gentilmente a lei quando ela se fizer respeitar com celeridade.
Essa é a disciplina da liberdade: a disciplina do trabalho, da poupança, do investimento, servindo os outros e ao mesmo tempo tentando melhorar a nossa própria condição. Tem sido experimentada por outros e funciona. Director do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa; titular da cátedra European Parliament/Bronislaw Geremek in European Civilization no Colégio da Europa, Campus de Natolin, Varsóvia

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