Omeletas sem ovos

Público, 2011060  Luís Campos e Cunha
O facto deste governo, por culpa do anterior, não ter dinheiro para fazer obras dá-lhe a possibilidade de fazer Obra

Qualquer governo, que tenha verdadeiras intenções de governar o país, confronta-se com o dilema da falta de recursos financeiros. O financiamento do Estado está dramaticamente limitado e condicionado. E o programa da troika é a política orçamental para os próximos três anos. Mas isto não são necessariamente más notícias, porque os grandes problemas do país resolvem-se sem dinheiro e os grandes projectos não passaram disso mesmo, grandes projectos de megalómano.
Os problemas orçamentais advieram também de se lançar dinheiro sobre os verdadeiros problemas nacionais. E o dinheiro, só por si, não resolve nada. Só é ne-cessário ter políticas e a cabeça arrumada e, assim sendo, podemos fazer omeletas sem ovos.
Há (muitas) grandes áreas onde tal é possível. Vejamos apenas a justiça e a burocracia.
Como as grandes empresas e o Estado não terão possibilidade de aumentar o emprego, restam as pequenas e médias empresas. E aí está o problema social e económico: o elevado desemprego e a vida infernal em que as PME têm vivido. Aqui reside o verdadeiro nó górdio do crescimento da nossa economia. Tudo o resto é fumaça.
Basta falar com um pequeno empresário, seja das velhas ou das novas tecnologias, seja no Norte ou no Sul, para que ele conte centenas de pequenos entraves à sua actividade. Cada entrave leva semanas ou meses a resolver, o que representa semanas ou meses em que não se dedica àquilo que o empresário faz bem, que é gerir a empresa, fazer crescer a economia e o emprego. São as regras contabilísticas que foram pensadas para empresas com mil trabalhadores, ou são as leis dos impostos que são confusas, ou as da higiene na fábrica que pressupõem consultores e certificações de todo género. São as autorizações que nunca chegam, são as licenças que demoram anos, são as leis do trabalho inadequadas aos tempos de hoje e à pequena dimensão da exploração. E se a empresa for do sector agrícola ou agro-industrial então é o inferno no inferno.
Um amigo que tem, há vários anos, um excelente restaurante de grande sucesso, quis aumentar o negócio e trespassou outro uns quarteirões mais abaixo na rua. Esteve só quatro anos a pagar renda antes de o conseguir abrir. Os organismos de fiscalização inventavam sempre que havia uma porta a abrir em sentido contrário para não dar a licença. E de cada vez que lá iam perdiam-se mais seis meses. Outro amigo resolveu comprar um prédio antigo para, com uns familiares, o irem reabilitar e habitar. Tudo legal e legítimo, e sem especulação imobiliária, como outros gostam de salientar. Há seis ou sete anos que está tudo parado. Arruinou-se financeiramente, tem a vida num pequeno inferno, tudo porque a câmara (não refiro qual) ainda não despachou o processo, porque o perdeu, porque o deixou caducar, porque não tem um parecer que já foi emitido por outras autoridades há anos... Os exemplos são de todos os dias. Outro empresário meu conhecido foi para tribunal, num caso de trabalho, que ele mesmo queria perder, para fazer jurisprudência numa interpretação absurda da lei: ganhou, para sua frustração. Continua o inferno dele e dos trabalhadores. É assim a vida dos cidadãos e dos pequenos empresários, mas serão eles os únicos a fazer crescer este país.
Mas há outro sector (entre vários outros) em que podemos fazer omeletas sem ovos, que é a justiça. Todos sabemos sobre a justiça duas coisas: que funciona mal e cada vez pior; e, segundo, que temos muitos recursos afectos ao sector, por qualquer comparação internacional. Ou seja, o problema é grave e nunca foi falta de recursos. Se assim for, porque não pôr a justiça a funcionar? Há uma miríade de problemas que têm sido diagnosticados por muitos e, em particular, por Nuno Garoupa. Desde a organização do sistema à feitura das leis propositadamente confusas para alimentar jurisconsultos, aos códigos que estão para revisão desde que foram revistos, tudo parece um sonho mau. E mais uma vez os problemas caem em cima das pequenas empresas que não têm recursos para terem avenças com grandes escritórios de advogados. E caem, e de que maneira, sobre o cidadão incauto que, pela mesma razão, tem dificuldade em se defender.
Além disso a justiça, em custas e quejandos, é já de si caríssima. Se tiver a desdita de ser conhecido ou ser conhecido de alguém conhecido, poderá ser linchado nos jornais e abrir as notícias na televisão dias a fio. Tudo em nome da liberdade, mas sem Justiça. Ainda não foi arguido, ainda nem foi acusado, e já foi julgado e condenado. E sem apelo.
Sem justiça a funcionar não há verdadeira cidadania e logo a liberdade é sempre condicionada. Sem libertar a pequena economia não haverá mais emprego, o que agravará o já grave problema social do desemprego.
O facto deste governo, por culpa do anterior (não esqueçamos nem perdoemos), não ter dinheiro para fazer obras, dá-lhe a possibilidade de fazer Obra. E esta, nos casos citados, não absorve recursos, pelo contrário. Liberta a economia e cria emprego. Liberta recursos do Estado edas empresas. Liberta o cidadão de problemas potencialmente mais graves que muitas faltas de saúde. Isto será realmente importante, não há tempo nem recursos para fazer coisas, mas há a oportunidade para fazer omeletas sem ovos. Será que necessitámos de uma boa crise para se sair dela mais forte, fazendo o que há anos era necessário e urgente? Assim queiram os deuses. Professor universitário

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