Desensinar

Público 2011-06-16  Pedro Lomba

Paga-se um preço quando estamos desatentos. Só ontem soube, pelo protesto da vice-reitora da Universidade do Porto, Maria de Lurdes Fernandes, protesto que apareceu em vários jornais, que Camilo Castelo Branco já não integra o currículo do ensino secundário. Eu que, como toda a gente da minha colheita, precisei de ler Camilo e o Amor de Perdição, como precisei de sorver a brancura de Hermengarda no intragável Eurico, o Presbítero de Herculano, dei comigo a especular de novo sobre um assunto que sempre me interessou: o ensino da literatura nas escolas.
Estamos perante um tema sobre o qual é fácil assumirmos todas as poses. Digamos, para abreviar, que eu não sei se precisamos da literatura para produzir bons cidadãos ou boas "identidades sociais", como já vi escrito num sítio especializado. Suspeito que não. E não tenho a certeza se o gosto pela literatura se pode ensinar, tal como se ensina matemática ou geografia.
O que sei é que, aí como em tudo, há formas de ensinar a literatura que talvez sejam, chamem-lhe o que quiserem, pedagogicamente ou disciplinarmente correctas. Não as discuto nesse plano metodológico. Mas discuto-as ao nível do senso comum. Muitas das opções sobre esse ensino tomadas por quem nos rege lá no Olimpo são um disparate. Não ensinam nem a gostar de literatura e muito menos a gostar de ler. Pelo contrário, em tantos casos, destroem para uma vida inteira a possibilidade desse gosto.
Aqueles que ocupam a vida a ensinar sabem como é difícil. Nós tendemos a ver o acto de ensinar de uma maneira neutra. Pensamos que ensinar significa acrescentar. E, inversamente, pensamos que, quando não ensinámos bem, isso quer dizer que falhámos no objectivo de acrescentar.
Esquecemos, todavia, que ensinar é também, até por razões lógicas, não desensinar. Como diz um dicionário, "desensinar" significa "fazer desaprender". Ora, reconheçamos que é precisa uma grande dose de energia perversa para fazer uma pessoa desaprender. É um retrocesso. É como se tirássemos alguma coisa que essa pessoa já tinha ou já sabia ou podia saber, alguma coisa que ela tinha em potência e que, por nossa obra e graça, tristemente perdeu.
O caso do Amor de Perdição é particularmente ilustrativo. Só aprendi a gostar deste romance de Camilo depois de o ler muito mais tarde e pelos meus próprios meios. Na escola odiei. Detestei aquela leitura à lupa catando as elipses e as sinédoques, fazendo fichas das personagens e inventariando contextos. Para ficar, no fim, a saber o quê?
Hoje, que já consigo perceber o que não podia naquela altura, escapa-me por inteiro a praga com que certas modas de estudos literários infestaram o ensino da literatura nas escolas. Essa gente, que se calhar nunca pôs os pés numa sala de aula, devia ser proibida de decidir fosse o que fosse.
Escapa-me como é que pudemos ter lido Os Maias como técnicos de pormenores, atrapalhados com análise do texto, análises das descrições e outra relojoaria, sem perdermos um segundo a perceber porque é que algumas daquelas passagens são mesmo grande literatura, sem as lermos em voz alta, porque para aprender a gostar de literatura, é preciso ler em voz alta.
Escapa-me como é que do catálogo de obras do "meu" ensino público não estiveram outros autores como José Rodrigues Miguéis, contos brasileiros ou o próprio Machado de Assis. Escapa-me muita coisa sobre essa grande infelicidade que é o desensino da literatura.
Em vez disso aguentei a Hermengarda. E tentei ler o resto sozinho. Jurista

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