A culpa é da aritmética

Público 2011-06-16  
Helena Matos
Perante as performances flashmob dos indignados e os pré-anúncios de explosão social por parte dos sindicatos em Portugal

Escassas horas após ser conhecido o resultado das últimas eleições, já Carvalho da Silva e Silva Lopes avisavam que o futuro Governo não dispõe de uma "maioria social".

Ao certo, não se percebe a que corresponde o conceito de maioria social, tanto mais que, com o tempo, ele tem vindo a ficar menos preciso. No passado, chamou-se maioria de esquerda, maioria para o socialismo, maioria do povo trabalhador...

Não é por caso que esta oposição entre aritmética e social ressurgiu agora em Portugal num quadro de derrota do PS: afinal, o PS é o único partido que, em Portugal, consegue sobrepor as duas maiorias, a aritmética e a social. E consegue-o porque lutou por isso: a célebre manifestação da Alameda e o não menos importante comício das Antas, que tiveram lugar em Julho de 1975, foram precisamente a reivindicação, por parte do PS, da legitimidade da maioria aritmética, então praticamente encurralada por uma minoria aritmética nas urnas - o PCP e o seu satélite MDP não tinham chegado sequer aos 17% dos votos nas eleições para a Constituinte de Abril de 1975 - mas que claramente era maioritária nas ruas. Assim, quando o PS ganha, ganha e a sua maioria é isso mesmo: uma maioria legitimada nas urnas que ninguém duvida corresponder a uma maioria social, tanto mais que o PS é um partido transversal à sociedade portuguesa.

Pelo contrário, quando o PSD ganha, a sua maioria imediatamente é apresentada como uma vitória aritmética (e aritmética neste contexto é um termo depreciativo) que não representa uma maioria social, seja isso o que for. Esta debilidade do PSD e do CDS é particularmente grave num momento como este: o Governo Passos-Portas vai ter de aplicar o acordo com a troika. Este acordo foi sufragado a 5 de Junho por mais de 78 por cento dos votos, ou seja, pelas pessoas que votaram PSD, PS e CDS. E convém que estes partidos, sobretudo o PSD e o CDS, porque vão ser Governo e porque, ao contrário do PS, nem sempre o têm claro nos momentos adequados, sejam capazes de sublinhar a superioridade da legitimidade aritmética do voto perante a dita maioria social da rua ou, numa definição que me parece mais precisa, da maioria visível nas televisões, redes sociais e jornais.

O antagonismo entre maiorias aritméticas e maiorias ditas sociais ou mediáticas está aí de novo, à nossa espera. Em Portugal, está nas declarações dos profetas-pirómanos da explosão social que, para seu desgosto, não têm sido tão ouvidos quanto gostariam. Até agora, o que temos tido de mais relevante são anúncios de greves - algumas entretanto desconvocadas - por umas corporações aristocráticas das empresas públicas. (Já agora, será muito importante que, nas notícias sobre essas greves, nos informem claramente o que está a ser reivindicado em vez de termos de ouvir a eterna cassete das administrações a dizerem que não cedem e dos sindicatos a dizerem que não desistem.) Mas é sobretudo em Espanha que, por estes dias, se torna óbvia a capacidade de pequenos grupos muito activos, aparentemente folclóricos mas tendo na sua retaguarda grupos políticos organizados, de desencadearem acções de rua com vista a manter acossada uma parte da classe política. Como era expectável, fazem do PP o seu ódio de estimação e a vitória deste partido nas recentes municipais fortaleceu-lhes a convicção de que é na rua que conseguem o que as urnas não lhes dão, mas não foi preciso esperar muito para que também deputados socialistas se vissem cercados por essa multidão ululante.

Enquanto escrevo na tarde de 15 de Junho, a Catalunha vive momentos que remetem para o cerco à Constituinte em Portugal no ano de 1975: um parlamento cercado por manifestantes, deputados ameaçados (um deles cego) que pedem protecção policial; membros do Governo e parlamentares encafuados em autocarros e helicópteros, fugindo da violência dos manifestantes.

Se, da Catalunha, viermos até Madrid, encontramos estes mesmos grupos já não acampados na Porta do Sol mas sim irrompendo aqui e ali. Sendo que o aqui e o ali tanto pode ser boicotar um despejo de uma casa ocupada como encurralar o alcaide de Madrid à porta de sua casa. Contam com uma benevolência cósmica por parte dos jornalistas, que não se interrogam como se organizam esses protestos, por que não acontecem acampamentos nos locais onde os partidos que funcionam como cobertura legal da ETA obtiveram a maioria ou qual a representatividade de todos estes colectivos, plataformas e sindicatos.

Perante as performances flashmob dos indignados e os pré-anúncios de explosão social por parte dos sindicatos em Portugal (sendo que nunca é de mais assinalar que qualquer manifestação em Portugal organizada pela CGTP é um avanço civilizacional, intelectual e higiénico perante os acampamentos dos ditos à rasca ou indignados), há que recordar que, nas democracias, a legitimidade é indissociável da aritmética. Ensaísta

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