Em defesa do possibilismo

Público 2011-06-14 Pedro Lomba

O discurso de António Barreto no 10 de Junho foi recebido à esquerda com reprovação, quando não com urticária. Barreto tornou-se, nestes tempos recentes, um mal-amado por alguma esquerda e, em particular, pelo PS. Não espanta: criticou-os sem dó nem piedade. Sócrates, sentado ao lado de Cavaco, não disfarçava a raiva, que nele nunca é disfarçável. E os socialistas socráticos que também estavam em Castelo Branco, muitos deles ministros, ouviram a prédica sem o aplaudir uma vez.
Mas o que disse Barreto de tão ofensivo? Criticou os políticos, exigiu o "apuramento de responsabilidades" e falou no "direito" das novas gerações em rever a Constituição.
Para qualquer pessoa consciente do fracasso que significa um país, pela terceira vez em pouco mais de 30 anos, ter de estender a mão ao estrangeiro (para não falar dos gráficos do economista Álvaro Santos Pereira), o que disse Barreto não devia merecer grande basbaque. Corresponde fielmente ao que dizem as pessoas na rua.
Quem duvida que o apuramento de responsabilidades precisa de ser feito? Responsabilidades políticas, sim, mas também responsabilidades criminais, financeiras e administrativas. Nada disto tem sido uma especial preocupação da classe política, que não quer criar inimigos e evita posições que a fragilizem. Se o tivesse sido, com certeza que estaríamos melhor.
Disse-o uma vez e repito: quantas vezes os relatórios do Tribunal de Contas retratam uma realidade nociva para o interesse público e nada acontece? E se o Estado negociou ruinosamente muitas das parcerias público-privadas, alguém compreende o vazio de responsabilidades? Quem o fez, como o fez e por que o fez?
Isto não é ajustar contas com o passado, até mesmo com o passado socratista. Significa criar práticas de responsabilidade no futuro, para que o regime ganhe mais tino e decência. Barreto tem, pois, inteira razão.
Outro dos temas enunciados por Barreto foi a Constituição. Também não se percebe o escândalo. Repare-se que a Constituição de 1976 já precisou de ser várias vezes revista por causa da integração europeia. Mais que uma vez assumimos compromissos com a Europa (exemplo: a moeda única) e tivemos depois de rever a Constituição. E diga-se que esse trajecto mostra bem como temos conduzido a nossa política europeia ao sabor das circunstâncias sem uma visão de conjunto sobre as implicações constitucionais da integração.
Agora que, para recebermos a "solidariedade" europeia, teremos de executar um programa de reformas, não é novidade nenhuma que também precisemos de rever a Constituição. É o costume. Mas aqui concedo que com uma diferença: o programa externo obriga-nos a repensar muitos dos nossos presumíveis consensos políticos, muito daquilo que tem feito a nossa democracia clientelar e a cultura de reivindicação que a sustenta.
Só vejo por isso um caminho. Se quisermos que este pacote de mudanças seja democrática e politicamente legitimado como deve, é necessária uma reforma constitucional a sério. Uma conversa constitucional em que todos nós, e os que nasceram depois de 1976, possamos intervir num debate novo e limpo sobre o nosso futuro colectivo.
Não admira que Barreto, facto esquecido por quase todas as reacções, tenha ligado a necessidade dessa reforma com a repolitização das novas gerações e com a defesa, para usar um título alheio, do possibilismo. Uma "Constituição renovada" tem de ser possível. Para isso citou uma linha de pensamento que remonta ao insuspeito Jefferson na Constituição americana: "Cada geração tem o direito de rever a Constituição."
Barreto provavelmente compreendeu, e não foi o único, que certa esquerda se tornou arcaica, conservadora, desconfiada. Essa esquerda devia perceber que, se não quiser fugir ao seu tempo, tem de ouvir Barreto e não reagir por instinto às suas más notícias.

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