Um país, dois sistemas
Helena Matos, Público, 2010-11-25
Há um vago ar de dia de ponte porque muito boa gente, sobretudo no sector público, está de "nim" à greve
As notícias dizem que estamos em greve geral. Na rua por onde passo de manhã tudo funciona: cafés, o talho, o restaurante, a farmácia, a tabacaria e o quiosque. O mercado está cheio, os supermercados também. Cheio está também o parque automóvel duma editora que se estabeleceu aqui no bairro. À porta do colégio é o habitual corrupio de carros e crianças. Para geral a esta greve falta-lhe muito. É sim uma greve no sistema público. No sistema privado quase não há greve. No meio de tudo isto há um vago ar de dia de ponte porque como uma greve geral se traduz basicamente por conseguir paralisar os sectores que são essenciais para os outros poderem trabalhar - como as escolas e os transportes - muito boa gente, sobretudo no sector público, está de "nim" à greve. Ou seja, oficialmente não trabalham porque não têm onde deixar os filhos nem transportes públicos assegurados.
O que hoje está na rua não é portanto uma greve geral. É sim uma greve a que adere uma parte significativa dos trabalhadores cujos ordenados são pagos directa ou indirectamente com dinheiros públicos. Por outro lado esta greve não é propriamente uma greve. Uma greve é uma interrupção do trabalho decidida pelos trabalhadores que através desse procedimento esperam pressionar as entidades patronais de modo a que estas satisfaçam as suas reivindicações. Neste caso isso não só não acontece como não é possível. Para que os grevistas vissem satisfeito o seu caderno reivindicativo os contribuintes, e dentro destes o sector privado que é o que gera a riqueza indispensável ao sustento do sector público, teriam de pagar ainda mais impostos. Ora Portugal atingiu o limite do esforço fiscal.
Pode, é certo, aumentar-se o combate à evasão fiscal, agitar-se o espantalho das grandes fortunas e fazer-se da fiscalidade uma recriação do velho Oeste onde vale tudo para cobrar impostos - e neste momento o simples planeamento fiscal ou seja o, dentro da legalidade, procurar pagar o menos possível está quase criminalizado - mas mesmo assim não há dinheiro que chegue. Por isso esta greve que não é geral também não é uma greve no sentido em que não se espera que gere resultados além da paralisação em si mesma. Na verdade também não foram exactamente greves o que aconteceu recentemente em França e Espanha, onde os sindicalistas impuseram paralisações e fizeram bloqueios de modo a que os outros não pudessem trabalhar ou sequer deslocar-se. O resultado foi desastroso para os sindicatos, cujos piquetes pareciam umas milícias fundamentalistas e levaram muitos cidadãos a questionar-se sobre o modus operandi dos sindicatos. Em Portugal o que tivemos de mais parecido com isso foi o bloqueio da Ponte 25 de Abril em 1994. Mas em 2010 muitos dos protagonistas desse bloqueio não só não se revêem, pelo menos enquanto o PS estiver no poder, no que então disseram e fizeram como na verdade o povo português dificilmente entenderia hoje que se desse cobertura institucional a tais comportamentos, como aconteceu em Julho de 1994 quando, durante a crise da Ponte 25 de Abril, os líderes do bloqueio foram recebidos festivamente no Palácio de Belém.
Assim, não só a greve de hoje, 24 de Novembro, não foi geral como também não foi uma greve. Tratou-se sim duma demonstração de irritação do sector Estado consigo mesmo - os estatistas que estão no Governo são tão estatistas quanto os grevistas, simplesmente já não têm mais onde ir buscar dinheiro para pagar tanto Estado. Este sistema público trava neste momento dentro de si uma espécie de lutas de classes: de um lado estão as chefias, os quadros e os boys dos partidos instalados nos seus pelouros tão difusos quanto bem pagos, com direito a carro, secretária, cartão de crédito e despesas de representação. Do outro estão aqueles que compensam os fracos vencimentos e as carreiras bloqueadas com a segurança de um emprego que acreditavam para toda a vida. Os segundos acham que tudo corre mal por causa dos abusos dos primeiros e vice-versa. Provavelmente todos têm razão. Uma boa parte desta gente ocupa a maior parte do seu tempo dito laboral a definir o que é e não é da sua competência. Uma boa parte do que fazem não tem outra utilidade que não seja a de justificar a existência dos respectivos serviços. (Um serviço público pode fechar as portas e aqueles que a ele têm de recorrer serem enviados para outro local, mas durante anos os funcionários do serviço extinto lá continuarão entregues na rotina dos ofícios e dos memorandos do serviço que só a eles serve.) Noutros casos o que fazem seria realizado muito melhor e mais barato pelo sector privado. Por fim, o que, como a justiça, é vital que o Estado faça corre de forma tão constrangedora e autista que entrou em descrédito.
Enfim o sistema Estado vive dias de irritação consigo mesmo e de perplexidade perante um sector privado que não produz o suficiente para que o sector público continue a viver como tem vivido e a crescer como tem crescido. Carvalho da Silva e João Proença não lutam, como gostam de dizer, pelos direitos dos trabalhadores. Eles lutam sim para nos impor o dever de sustentarmos o sector público e os direitos adquiridos da sua geração.
Para seu e nosso mal, a CGTP e a UGT não encontram em Portugal grandes empresas cheias de lucros milionários que suportem os encargos das suas reivindicações. Melhor dizendo, existem algumas, mas na sua maioria são aquelas que crescem sob o chapéu-de-chuva estatal. Donde à CGTP e à UGT só lhes restarem como improváveis patrões, se por patrão se entender aquele que paga o ordenado, alguns portugueses em sufoco fiscal. Lembram-se do slogan de contestação às propinas "Não pagamos"? Digamos que aquilo que estamos a viver é um imenso e silencioso "Não conseguimos pagar mais" por parte de um sector da sociedade, o privado, e por parte das gerações mais novas que, tanto no sector público como no privado, pagam aos trabalhadores mais velhos direitos adquiridos que eles próprios nunca terão. Um país com dois sistemas nunca me pareceu um sítio recomendável para se viver. Mas é esse mundo que vimos em luta pela sua sobrevivência nesta greve de 24 de Novembro de 2010. Ensaísta
Há um vago ar de dia de ponte porque muito boa gente, sobretudo no sector público, está de "nim" à greve
As notícias dizem que estamos em greve geral. Na rua por onde passo de manhã tudo funciona: cafés, o talho, o restaurante, a farmácia, a tabacaria e o quiosque. O mercado está cheio, os supermercados também. Cheio está também o parque automóvel duma editora que se estabeleceu aqui no bairro. À porta do colégio é o habitual corrupio de carros e crianças. Para geral a esta greve falta-lhe muito. É sim uma greve no sistema público. No sistema privado quase não há greve. No meio de tudo isto há um vago ar de dia de ponte porque como uma greve geral se traduz basicamente por conseguir paralisar os sectores que são essenciais para os outros poderem trabalhar - como as escolas e os transportes - muito boa gente, sobretudo no sector público, está de "nim" à greve. Ou seja, oficialmente não trabalham porque não têm onde deixar os filhos nem transportes públicos assegurados.
O que hoje está na rua não é portanto uma greve geral. É sim uma greve a que adere uma parte significativa dos trabalhadores cujos ordenados são pagos directa ou indirectamente com dinheiros públicos. Por outro lado esta greve não é propriamente uma greve. Uma greve é uma interrupção do trabalho decidida pelos trabalhadores que através desse procedimento esperam pressionar as entidades patronais de modo a que estas satisfaçam as suas reivindicações. Neste caso isso não só não acontece como não é possível. Para que os grevistas vissem satisfeito o seu caderno reivindicativo os contribuintes, e dentro destes o sector privado que é o que gera a riqueza indispensável ao sustento do sector público, teriam de pagar ainda mais impostos. Ora Portugal atingiu o limite do esforço fiscal.
Pode, é certo, aumentar-se o combate à evasão fiscal, agitar-se o espantalho das grandes fortunas e fazer-se da fiscalidade uma recriação do velho Oeste onde vale tudo para cobrar impostos - e neste momento o simples planeamento fiscal ou seja o, dentro da legalidade, procurar pagar o menos possível está quase criminalizado - mas mesmo assim não há dinheiro que chegue. Por isso esta greve que não é geral também não é uma greve no sentido em que não se espera que gere resultados além da paralisação em si mesma. Na verdade também não foram exactamente greves o que aconteceu recentemente em França e Espanha, onde os sindicalistas impuseram paralisações e fizeram bloqueios de modo a que os outros não pudessem trabalhar ou sequer deslocar-se. O resultado foi desastroso para os sindicatos, cujos piquetes pareciam umas milícias fundamentalistas e levaram muitos cidadãos a questionar-se sobre o modus operandi dos sindicatos. Em Portugal o que tivemos de mais parecido com isso foi o bloqueio da Ponte 25 de Abril em 1994. Mas em 2010 muitos dos protagonistas desse bloqueio não só não se revêem, pelo menos enquanto o PS estiver no poder, no que então disseram e fizeram como na verdade o povo português dificilmente entenderia hoje que se desse cobertura institucional a tais comportamentos, como aconteceu em Julho de 1994 quando, durante a crise da Ponte 25 de Abril, os líderes do bloqueio foram recebidos festivamente no Palácio de Belém.
Assim, não só a greve de hoje, 24 de Novembro, não foi geral como também não foi uma greve. Tratou-se sim duma demonstração de irritação do sector Estado consigo mesmo - os estatistas que estão no Governo são tão estatistas quanto os grevistas, simplesmente já não têm mais onde ir buscar dinheiro para pagar tanto Estado. Este sistema público trava neste momento dentro de si uma espécie de lutas de classes: de um lado estão as chefias, os quadros e os boys dos partidos instalados nos seus pelouros tão difusos quanto bem pagos, com direito a carro, secretária, cartão de crédito e despesas de representação. Do outro estão aqueles que compensam os fracos vencimentos e as carreiras bloqueadas com a segurança de um emprego que acreditavam para toda a vida. Os segundos acham que tudo corre mal por causa dos abusos dos primeiros e vice-versa. Provavelmente todos têm razão. Uma boa parte desta gente ocupa a maior parte do seu tempo dito laboral a definir o que é e não é da sua competência. Uma boa parte do que fazem não tem outra utilidade que não seja a de justificar a existência dos respectivos serviços. (Um serviço público pode fechar as portas e aqueles que a ele têm de recorrer serem enviados para outro local, mas durante anos os funcionários do serviço extinto lá continuarão entregues na rotina dos ofícios e dos memorandos do serviço que só a eles serve.) Noutros casos o que fazem seria realizado muito melhor e mais barato pelo sector privado. Por fim, o que, como a justiça, é vital que o Estado faça corre de forma tão constrangedora e autista que entrou em descrédito.
Enfim o sistema Estado vive dias de irritação consigo mesmo e de perplexidade perante um sector privado que não produz o suficiente para que o sector público continue a viver como tem vivido e a crescer como tem crescido. Carvalho da Silva e João Proença não lutam, como gostam de dizer, pelos direitos dos trabalhadores. Eles lutam sim para nos impor o dever de sustentarmos o sector público e os direitos adquiridos da sua geração.
Para seu e nosso mal, a CGTP e a UGT não encontram em Portugal grandes empresas cheias de lucros milionários que suportem os encargos das suas reivindicações. Melhor dizendo, existem algumas, mas na sua maioria são aquelas que crescem sob o chapéu-de-chuva estatal. Donde à CGTP e à UGT só lhes restarem como improváveis patrões, se por patrão se entender aquele que paga o ordenado, alguns portugueses em sufoco fiscal. Lembram-se do slogan de contestação às propinas "Não pagamos"? Digamos que aquilo que estamos a viver é um imenso e silencioso "Não conseguimos pagar mais" por parte de um sector da sociedade, o privado, e por parte das gerações mais novas que, tanto no sector público como no privado, pagam aos trabalhadores mais velhos direitos adquiridos que eles próprios nunca terão. Um país com dois sistemas nunca me pareceu um sítio recomendável para se viver. Mas é esse mundo que vimos em luta pela sua sobrevivência nesta greve de 24 de Novembro de 2010. Ensaísta
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