Querida sarjeta

Público, 2010-11-04 Helena Matos
Após vários anos de convívio percebi que a História recente do país é simbolizada por ela, a sarjeta da minha rua

Aí onde a vêem causou-me sérias irritações. Mas após vários anos de convívio percebi que a História recente do país é simbolizada por ela, a sarjeta da minha rua.

Note-se que a sarjeta da minha rua começou por ser uma sarjeta como as outras. Um dia que não sei precisar mas que creio ter acontecido ainda no século passado a pedra da sarjeta deslocou-se. Coisa pouca e só perceptível a quem, como eu, todos os dias se cruza com ela. Pouco depois, talvez já no século XXI, a pedra partiu-se. Entretanto a calçada começou a esboroar-se. As suas pedras a cada dia mais soltas começaram a atulhar o espaço da antiga sarjeta. Pouco a pouco da amálgama de pedras e lama surgiu esta composição com um vago ar de megálito em ponto pequeno. Digamos que é uma pós-sarjeta. Um monumento da contemporaneidade e em que de repente descobri plasmada a explicação da actual crise.

A história da sarjeta da minha rua é afinal portuguesmente nossa: ao longo de todo o tempo em que esta sarjeta se ia esboroando a autarquia lisboeta responsável pelo seu arranjo, ou mais concretamente pelo seu não arranjo, conheceu quatro presidentes - António Costa, Carmona Rodrigues, Santana Lopes e João Soares. Todos eles disseram querer o melhor para a cidade. Na senda desse melhor prometeram dinamizar, salvar e modernizar Lisboa e consequentemente encomendaram projectos como o de Gehry para o Parque Mayer ou o do Vale de Santo António que nunca saíram do papel. Gastaram milhões e milhões de euros a adquirir edifícios, como o Banco Nacional Ultramarino na Rua Augusta, enquanto o imenso património da autarquia se degradava. (Simbolicamente o próprio edifício do ex-BNU agora Museu do Design parece ter incorporado este destino entre a megalomania do poder e a decadência da realidade pois no passado fim-de-semana um papelucho colado no que já foi uma porta monumental e limpa avisava que o museu estava fechado porque chovera lá dentro.) Patrocinaram festivais multiculturais e intergeracionais com muitos comissários disto e daquilo enquanto nos autocarros e carruagens de comboio cidadãos de todas as cores passaram a ter medo dos assaltos. Quiseram definir como deviam ser as nossas campas e acabaram a malbaratar milhões de euros num cemitério, o de Carnide, em que milhares de corpos não se decompõem. Acharam que a autarquia devia fazer cidade e não administrá-la, o que levou à multiplicação das empresas municipais que mesmo quando não fazem nada não se conseguem extinguir. Por isso teríamos inevitavelmente de acabar como acabámos: o município tem as suas verbas quase cativas só para suportar despesas de funcionamento e nas próximas eleições novos candidatos ou estes prometerão dar mais, organizar mais eventos, produzir mais diplomas para juntar aos cem que, segundo a Ordem dos Engenheiros, já são necessários para licenciar um edifício em Lisboa e que levam a que em tantos municípios de Portugal quem faz obras legais pague mais de taxas e de licenças que aquilo que gasta em pedreiros e tijolos.

E se da escala municipal passarmos para o país o que encontramos é exactamente o mesmo. Ou seja o Estado deixou de fazer o seu papel e propõe-se fazer tudo o que não lhe compete. Afecta recursos humanos e materiais a impedir que comamos bolas de Berlim nas praias enquanto se mostra incapaz de garantir a segurança nas mesmas. O Ministério da Educação que devia zelar pela qualidade do ensino ilude os resultados escolares para que não se perceba a degradação a que se chegou e depois oferece Magalhães como se a solução para tal descalabro passasse por mais tralha e não pela aposta no saber. Não consegue sequer colocar a máquina estatal a trabalhar como deve - será possível que com tanto jurista a trabalhar no Estado se recorra constantemente a estudos e pareceres externos? - mas aproveita todas as ocasiões para dificultar a actividade dos privados, sobretudo se estes não tiverem dimensão suficiente para serem considerados um parceiro de negócios... Os exemplos são imensos. Podem encher-se páginas e páginas com as inenarráveis opções que têm sido tomadas na hora de gastar o nosso dinheiro. Mas para lá deste desperdício que nos colocou na falência - em termos práticos a dívida soberana tornou-se a efectiva soberana do país - o que está em causa é o papel dos eleitos políticos. O que queremos que os políticos façam?

Mesmo que houvesse dinheiro para tal - e como vemos não há - um Estado que quer substituir-se aos indivíduos, às famílias e às empresas é um Estado que tenderá a ser cada vez menos democrático.

A sarjeta da minha rua é disso um exemplo: os moradores não a podem mandar arranjar pois isso é competência da autarquia. Todos os anos por aqui se paga taxa de esgotos, de saneamento variável e de saneamento fixo. Claro que também temos IMI e o Adicional C.M. Lisboa, seja isso o que for. Mas não há dinheiro para mandar arranjar a sarjeta.

Esta sarjeta não é um monumento menos digno que o "Portugal Piscina" de Joana Vasconcelos que está exposto no Terreiro do Paço. Esta sarjeta só aparentemente resulta de um desleixo de anos e anos. Ela é sim o produto eleboradíssimo do Estado promotor de mudanças de mentalidades, dinamizador de empregos, gerador de riqueza, agente cultural... Na sua aparente irrelevância a sarjeta da minha rua simboliza onde nos levou uma classe política que quis fazer de pai, empresário, padre, assistente social, arquitecto e animador de festas. Só não quis mesmo foi fazer aquilo que lhe compete. Ou seja, servir o povo. Ensaísta

Comentários

Anónimo disse…
Afinal onde se localiza esta célebre sarjeta??

J. Monteiro

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