Guia para a crise
JOÃO CÉSAR DAS NEVES
DN2010-11-08
Tem custado a assumir, mas parece que todos finalmente aceitam que estamos em crise. Até o Governo abandonou meses de hesitação e panaceias e adoptou esse discurso oficial. Tirando José Sócrates, toda a gente no mundo sabe que Portugal vive uma crise séria. Agora só falta enfrentá-la. Algumas ideias simples podem ajudar.
Primeiro: deixar-se de queixas.
Temos de abandonar o ar pesaroso e indignado. As crises são normais, frequentes, e não são o fim do mundo. Já tivemos muitas, várias muito piores que esta, e teremos bastante mais no futuro. Lamentos, zangas e desesperos são agora, não só ridículos, mas prejudiciais. O que há a fazer é deixar-se de tretas e deitar mãos à obra. Compreende-se que os sindicatos tenham de fazer manifestações e declarar a greve geral. É a sua função e há que cumprir calendário. Mas isso não resolve nada e complica tudo ainda mais. Queixar-se nesta altura é perda de tempo. Nem sequer nos devemos queixar do facto evidente de aqueles que protestam não serem os mais afectados, pobres e desempregados, mas aqueles que defendem benefícios que criaram a crise.
Segundo: deixar-se de acusações.
A crise tem vários culpados, alguns evidentes. E até é verdade que muitos desses estão a passar incólumes beneficiando das suas tropelias. Justiça e tribunais devem puni-los. Mas também devemos deixar a busca obsessiva de arguidos. É muito estúpido, quando a casa está a arder, instaurar controversos processos de intenção e responsabilidade, envolvendo-se em discussões necessariamente longas. Há um tempo para tudo, e este não é tempo de recriminações. Até porque a culpa última é de todos nós, que cá vivemos estes anos.
Terceiro: deixar-se de fantasias.
As fantasias são de dois tipos: as tolices optimistas do Governo e os cenários catastróficos das conversas de café. Estas últimas são as mais perigosas. Portugal não é um país miserável, incapaz e sem saída, que voltou à desgraça de sempre. Somos um estado desenvolvido, moderno, onde muitas coisas funcionam bem e existem excelentes oportunidades. É verdade que nos deixámos endividar na euforia, mas isso até é sinal de credibilidade. Agora temos de pagar: o problema é grave mas está circunscrito. É preciso enfrentá-lo sem perder a cabeça em atoardas. O realismo é o melhor trunfo para enfrentar as dificuldades como elas são. Sem as escamotear, mas também sem as exagerar.
Quarto: enfrentar a crise.
Os portugueses, que costumam dormir na bonança, dão o seu melhor nos momentos impossíveis. A recessão não tem uma solução; tem milhões. Dez milhões, para ser exacto. Será cada um, lidando de forma prática com as dificuldades reais que se lhe colocam, que construirá a resposta indispensável para a crise nacional. Trabalhar mais e melhor, poupar mais, investir mais e melhor são as saídas, agora como sempre. Além da criatividade, imaginação, improvisação e desenrascanço em que somos peritos. Se fizermos isto uns tempos veremos que a crise passa muito mais depressa que julgamos.
Para alguns a saída é mesmo sair do país. É uma resposta habitual por cá, que não nos deve deprimir. Fizemo-lo muitas vezes e voltaremos a fazê-lo. Sabemos aliás que é lá fora que damos o nosso melhor. Desta vez é bom lembrar que um dos mais apetecidos destinos de emigração tem sido... Portugal. Todos os empregos que desdenhámos na última década, e que trouxeram para cá milhares de estrangeiros, continuam por aí. E naturalmente os portugueses ainda têm vantagem face a emigrantes ou a emigrar. Ou não?
Ainda falta algo essencial: não podemos perder a nossa tradicional compaixão pelos que mais necessitam e sofrem. A crise ataca alguns de forma brutal e temos todos de os ajudar. Sabemos bem que "ai dos pobres se não forem os pobres". A injustiça nacional dos últimos anos deveu-se precisamente a que, sendo novos ricos, por momentos perdemos de vista os antigos valores. A crise tem de ser um chamamento à famosa hospitalidade lusitana.
Todos sabemos que estamos em crise. Agora só há uma continuação possível: sair dela.
DN2010-11-08
Tem custado a assumir, mas parece que todos finalmente aceitam que estamos em crise. Até o Governo abandonou meses de hesitação e panaceias e adoptou esse discurso oficial. Tirando José Sócrates, toda a gente no mundo sabe que Portugal vive uma crise séria. Agora só falta enfrentá-la. Algumas ideias simples podem ajudar.
Primeiro: deixar-se de queixas.
Temos de abandonar o ar pesaroso e indignado. As crises são normais, frequentes, e não são o fim do mundo. Já tivemos muitas, várias muito piores que esta, e teremos bastante mais no futuro. Lamentos, zangas e desesperos são agora, não só ridículos, mas prejudiciais. O que há a fazer é deixar-se de tretas e deitar mãos à obra. Compreende-se que os sindicatos tenham de fazer manifestações e declarar a greve geral. É a sua função e há que cumprir calendário. Mas isso não resolve nada e complica tudo ainda mais. Queixar-se nesta altura é perda de tempo. Nem sequer nos devemos queixar do facto evidente de aqueles que protestam não serem os mais afectados, pobres e desempregados, mas aqueles que defendem benefícios que criaram a crise.
Segundo: deixar-se de acusações.
A crise tem vários culpados, alguns evidentes. E até é verdade que muitos desses estão a passar incólumes beneficiando das suas tropelias. Justiça e tribunais devem puni-los. Mas também devemos deixar a busca obsessiva de arguidos. É muito estúpido, quando a casa está a arder, instaurar controversos processos de intenção e responsabilidade, envolvendo-se em discussões necessariamente longas. Há um tempo para tudo, e este não é tempo de recriminações. Até porque a culpa última é de todos nós, que cá vivemos estes anos.
Terceiro: deixar-se de fantasias.
As fantasias são de dois tipos: as tolices optimistas do Governo e os cenários catastróficos das conversas de café. Estas últimas são as mais perigosas. Portugal não é um país miserável, incapaz e sem saída, que voltou à desgraça de sempre. Somos um estado desenvolvido, moderno, onde muitas coisas funcionam bem e existem excelentes oportunidades. É verdade que nos deixámos endividar na euforia, mas isso até é sinal de credibilidade. Agora temos de pagar: o problema é grave mas está circunscrito. É preciso enfrentá-lo sem perder a cabeça em atoardas. O realismo é o melhor trunfo para enfrentar as dificuldades como elas são. Sem as escamotear, mas também sem as exagerar.
Quarto: enfrentar a crise.
Os portugueses, que costumam dormir na bonança, dão o seu melhor nos momentos impossíveis. A recessão não tem uma solução; tem milhões. Dez milhões, para ser exacto. Será cada um, lidando de forma prática com as dificuldades reais que se lhe colocam, que construirá a resposta indispensável para a crise nacional. Trabalhar mais e melhor, poupar mais, investir mais e melhor são as saídas, agora como sempre. Além da criatividade, imaginação, improvisação e desenrascanço em que somos peritos. Se fizermos isto uns tempos veremos que a crise passa muito mais depressa que julgamos.
Para alguns a saída é mesmo sair do país. É uma resposta habitual por cá, que não nos deve deprimir. Fizemo-lo muitas vezes e voltaremos a fazê-lo. Sabemos aliás que é lá fora que damos o nosso melhor. Desta vez é bom lembrar que um dos mais apetecidos destinos de emigração tem sido... Portugal. Todos os empregos que desdenhámos na última década, e que trouxeram para cá milhares de estrangeiros, continuam por aí. E naturalmente os portugueses ainda têm vantagem face a emigrantes ou a emigrar. Ou não?
Ainda falta algo essencial: não podemos perder a nossa tradicional compaixão pelos que mais necessitam e sofrem. A crise ataca alguns de forma brutal e temos todos de os ajudar. Sabemos bem que "ai dos pobres se não forem os pobres". A injustiça nacional dos últimos anos deveu-se precisamente a que, sendo novos ricos, por momentos perdemos de vista os antigos valores. A crise tem de ser um chamamento à famosa hospitalidade lusitana.
Todos sabemos que estamos em crise. Agora só há uma continuação possível: sair dela.
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