Wall Street
DN 2010-11-22
JOÃO CÉSAR DAS NEVES
A crise financeira é um tema irresistível para o cinema. Com todo o dramatismo das grandes turbulências, inclui o fascínio da riqueza e a magia dos poderes ocultos. Oliver Stone marcara o género em 1987 com o memorável Wall Street, sobre a geração dos yuppies e junk bonds. Agora regressa com Wall Street: Money never Sleeps, um filme inteligente, delicado e penetrante. O seu grande valor é não ficar pelos clichés e caricaturas fáceis, mostrando pessoas de carne e osso no terrível turbilhão financeiro. Aí descobrem que afinal "o dinheiro não é o activo principal na vida. O tempo é que é" (Gordon Gekko).
A obra não pretende explicar os mecanismos das flutuações bancárias. Essa é a finalidade do documentário Inside Job, de Charles Ferguson, 2010, como fora o de Capitalism: A Love Story, de Michael Moore, 2009. O novo filme tem menos exuberância e mais qualidade que o do ano passado (pois o tema principal dos filmes de Michael Moore é sempre... Michael Moore). Apesar disso, Inside Job falha precisamente pelas mesmas razões. Em ambos, o autor/realizador tem uma teoria da conspiração e todo o esforço se dirige, não a entender o problema, mas a caçar argumentos que confirmem a tese de partida.
A conclusão dos dois documentários é a mesma, e tão vasta e genérica que fica evidente a sua inanidade: a culpa da crise é a esmagadora cobiça de toda a classe financeira, que já contaminou a universidade e a política americanas ao mais alto nível. Se é assim, qual a solução? Será os cineastas tomarem conta da gestão bancária, supervisão financeira e política monetária?
Não tem Ferguson alguma razão? Sim, e por isso o seu fiasco é tão grave. É verdade que o grave colapso mostrou enormes vícios, erros e fraudes no sistema, que merecem ser examinados, entendidos e castigados. Fazer essa análise cuidadosa teria sido um contributo precioso. O simplismo, indignidade e atrevimento pateta do filme impedem-na totalmente. Aliás, acusar a ganância e estupidez não serve, porque sempre houve tanto por aí que, se fosse só isso, estaríamos sempre em crise.
A desonestidade intelectual de Ferguson é só comparável com a crueldade com que trata os alvos. Lançado na cruzada, selecciona dados, corta opiniões, manipula informações e distorce factos para espremer tudo na sua forma ideológica. Se temos o gozo de ver ridicularizados alguns poderosos, não se avança nada na compreensão do fenómeno.
É notável que o autor tenha conseguido entrevistar alguns dos mais reputados participantes e estudiosos da crise de 2008-2009, incluindo grandes economistas como Martin Feldstein, Frederic Mishkin, Nouriel Roubini (também em Wall Street 2) e Raghuram Rajan, e políticos de primeira linha como Lee Hsien Loong, primeiro-ministro de Singapura, Christine Lagarde, ministra das Finanças francesa, ou David McCormick, subsecretário do Tesouro da Administração Bush, entre outros. Mas é ainda mais espantoso que, tendo essas entrevistas, o autor não procure saber como esses notáveis explicam os acontecimentos ou justificam as acções. O que lhe interessa são acusações grosseiras, conspirações mirabolantes, detalhes processuais ou, em certos casos, simplesmente fazer passar por parva a individualidade que teve a simpatia de o receber. Pode dizer-se que este filme é o maior desperdício de recursos valiosos de toda a crise.
Isto é importante porque mostra o alastrar de uma forma de jornalismo-espectáculo, onde seriedade, equilíbrio ou mera decência são substituídos por diagnósticos radicais e acusações bombásticas. Muita gente considera isto um relato útil.
É particularmente irónico que tal simplismo, indignidade e atrevimento seja comparável ao dos próprios banqueiros que geraram a crise, e que o filme pretende condenar. Mas é pior, pois o cineasta arroga-se o papel de polícia, acusador, juiz, júri e carrasco, coisa que, em toda a sua influência, os financeiros nunca conseguiram. Por isso, dizer que Inside Job é o Lehman Brothers do documentário económico seria uma injustiça... para o Lehman Brothers.
naohaalmocosgratis@fcee.ucp.pt
JOÃO CÉSAR DAS NEVES
A crise financeira é um tema irresistível para o cinema. Com todo o dramatismo das grandes turbulências, inclui o fascínio da riqueza e a magia dos poderes ocultos. Oliver Stone marcara o género em 1987 com o memorável Wall Street, sobre a geração dos yuppies e junk bonds. Agora regressa com Wall Street: Money never Sleeps, um filme inteligente, delicado e penetrante. O seu grande valor é não ficar pelos clichés e caricaturas fáceis, mostrando pessoas de carne e osso no terrível turbilhão financeiro. Aí descobrem que afinal "o dinheiro não é o activo principal na vida. O tempo é que é" (Gordon Gekko).
A obra não pretende explicar os mecanismos das flutuações bancárias. Essa é a finalidade do documentário Inside Job, de Charles Ferguson, 2010, como fora o de Capitalism: A Love Story, de Michael Moore, 2009. O novo filme tem menos exuberância e mais qualidade que o do ano passado (pois o tema principal dos filmes de Michael Moore é sempre... Michael Moore). Apesar disso, Inside Job falha precisamente pelas mesmas razões. Em ambos, o autor/realizador tem uma teoria da conspiração e todo o esforço se dirige, não a entender o problema, mas a caçar argumentos que confirmem a tese de partida.
A conclusão dos dois documentários é a mesma, e tão vasta e genérica que fica evidente a sua inanidade: a culpa da crise é a esmagadora cobiça de toda a classe financeira, que já contaminou a universidade e a política americanas ao mais alto nível. Se é assim, qual a solução? Será os cineastas tomarem conta da gestão bancária, supervisão financeira e política monetária?
Não tem Ferguson alguma razão? Sim, e por isso o seu fiasco é tão grave. É verdade que o grave colapso mostrou enormes vícios, erros e fraudes no sistema, que merecem ser examinados, entendidos e castigados. Fazer essa análise cuidadosa teria sido um contributo precioso. O simplismo, indignidade e atrevimento pateta do filme impedem-na totalmente. Aliás, acusar a ganância e estupidez não serve, porque sempre houve tanto por aí que, se fosse só isso, estaríamos sempre em crise.
A desonestidade intelectual de Ferguson é só comparável com a crueldade com que trata os alvos. Lançado na cruzada, selecciona dados, corta opiniões, manipula informações e distorce factos para espremer tudo na sua forma ideológica. Se temos o gozo de ver ridicularizados alguns poderosos, não se avança nada na compreensão do fenómeno.
É notável que o autor tenha conseguido entrevistar alguns dos mais reputados participantes e estudiosos da crise de 2008-2009, incluindo grandes economistas como Martin Feldstein, Frederic Mishkin, Nouriel Roubini (também em Wall Street 2) e Raghuram Rajan, e políticos de primeira linha como Lee Hsien Loong, primeiro-ministro de Singapura, Christine Lagarde, ministra das Finanças francesa, ou David McCormick, subsecretário do Tesouro da Administração Bush, entre outros. Mas é ainda mais espantoso que, tendo essas entrevistas, o autor não procure saber como esses notáveis explicam os acontecimentos ou justificam as acções. O que lhe interessa são acusações grosseiras, conspirações mirabolantes, detalhes processuais ou, em certos casos, simplesmente fazer passar por parva a individualidade que teve a simpatia de o receber. Pode dizer-se que este filme é o maior desperdício de recursos valiosos de toda a crise.
Isto é importante porque mostra o alastrar de uma forma de jornalismo-espectáculo, onde seriedade, equilíbrio ou mera decência são substituídos por diagnósticos radicais e acusações bombásticas. Muita gente considera isto um relato útil.
É particularmente irónico que tal simplismo, indignidade e atrevimento seja comparável ao dos próprios banqueiros que geraram a crise, e que o filme pretende condenar. Mas é pior, pois o cineasta arroga-se o papel de polícia, acusador, juiz, júri e carrasco, coisa que, em toda a sua influência, os financeiros nunca conseguiram. Por isso, dizer que Inside Job é o Lehman Brothers do documentário económico seria uma injustiça... para o Lehman Brothers.
naohaalmocosgratis@fcee.ucp.pt
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