A mudança de sexo e o bisturi ideológico
Foram aprovados recentemente na generalidade os projectos do Governo e do Bloco de Esquerda que criam o procedimento de mudança de sexo e nome próprio no registo civil, em lugar de se propor uma acção em tribunal. Os argumentos evocados pelo legislador para apresentar esta proposta foram os custos inerentes de tempo e dinheiro, bemcomo o desgaste psicológico envolvido.
Em primeiro lugar, é lamentável que se tenha legislado sobre esta matéria sem que tenha havido um debate nasociedade. As razões relacionadas com custos, desgaste psicológico, e as humilhações a que estas pessoas, por vezes, se encontram sujeitas, não colhem. Na verdade, o que é humilhante para estas pessoas (e para os restantes cidadãos) é terem uma justiça lenta e uns serviços de saúde mental que estão muito aquém do necessário e do desejado. Para comprová-lo basta referir que o nosso orçamento para a saúde mental é proporcionalmente um dos mais baixos da união europeia.
Por outro lado, o facilitismo no campo legislativo, numa matéria tão sensível e complexa como esta, pode ser perigoso porque, neste processo, o tempo é fundamental para se clarificar odiagnóstico, pois se existem casos de evolução crónica, também têm sido referidos outros de remissão espontânea.
Atendendo ao facto de não existirem efectivas mudanças que favoreçam a assistência psiquiátrica destas pessoas, este projecto-lei serve apenas os interesses de uma ideologia: a ideologia do género. Esta ideologia defende que o sexo não é determinado pela biologia, mas pelo papel sexual que cada um tem na sociedade. A célebre frase de Simone Beauvoir expressa essa ideia: «uma mulher não nasce mulher, torna-se mulher». A ideologia do género menospreza o sexo biológico, defendendo que a identidade sexual é construída pelo próprio sujeito. Ou seja, deixa de existir qualquer identidade humana estável, sobrepondo-se assim a vontade subjectiva sobre a realidade objectiva. Mas não é precisamente desse conflito que nascem muitas doenças psiquiátricas?
Se considerarmos que identidade sexual varia de acordo com os interesses e o gosto de cada um, deixa de fazer sentido falar em “normal” e “patológico”, o que, para quem procura objectividade na psiquiatria, enquanto ramo da ciência médica, é um argumento pouco convincente. Mas foi nesta precariedade argumentativa que foi criada esta legislação. Neste caso não pareceu existir uma legitima preocupação de melhorar objectivamente a ajuda clínica destas pessoas, nem tão-pouco acrescentar quaisquer novos direitos – sabendo de antemão que a actual Constituição não consagra discriminações em função do sexo ou da orientação sexual–, mas de incorporar na legislação umaideologia.
A ideologia do género que tem sustentado estas mudanças legislativas não irá servir as pessoas que estão em sofrimento com a sua identidade sexual; pelo contrário, irá prejudicá-las. Actualmente, nos EUA, já se discute a possibilidade de retirar a perturbação da identidade sexual da nova classificação de doenças mentais (DSM V), com efeitos seguramente desastrosos pois, se não for mais considerada doença, os tratamentos médicos e psiquiátricos deixarão de ser pagos. Num certo sentido, é o caminho apontado pela proposta de legislação, simplificando artificialmente o que é complexo, encaminhando estas pessoas, com um relatório clínico, dos hospitais para as conservatórias do registo civil, dizendo-lhes que assim émais rápido, barato, e que o seu sofrimento é aliviado por decreto-lei; ou seja, a mudança de sexo é tratada através de um “bisturi ideológico”.
Pedro Afonso
Médico Psiquiatra
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