Da importância política da sopa
Público, 2010.11.13 Helena Matos
Ao menos nesta crise já não parece coisa de pobre comer-se sopa, pois quando as crises nos visitam nós voltamos à sopaE, contudo, ainda há algumas décadas a sopa era um sinal do nosso atraso. Nos anos 60 e 70 era um dado adquirido que no dia em que fôssemos todos evoluídos e europeus a sopa seria substituída pelos iogurtes e pelas saladas. Enquanto não se atingia esse depurado patamar civilizacional, devia pelo menos tentar-se que os etéreos purés de cenoura substituíssem, nas nossas toscas mesas, aquelas sopas de feijão e grão que, a par da roupa pendurada à janela, eram um sinal inequívoco do luso atavismo, com a agravante estética que as ditas sopas nem para postal ilustrado serviam. Convém registar que nesses tempos em que o frango assado, os bifes e os combinados passavam por alimentos modernos, o top da boçalidade era ocupado por aqueles que preferiam o azeite ao óleo no momento de temperar a salada.
Ao fim de alguns anos gastronomicamente muito difíceis percebemos que podemos invejar o regular funcionamento das instituições holandesas sem que tenhamos de colocar nos nossos pratos aquilo a que chamam comida os muito democráticos e evoluídos holandeses. As palavras, neste domínio tal como na política, querem dizer uma coisa hoje e amanhã o seu contrário: aquilo que, como acontecia com as açordas e as feijoadas, anteriormente se chamava pejorativamente farta-brutos passou agora a designar-se sofisticadamente por dieta mediterrânica.
Enfim, atrás de tempos tempos vêm. E ao menos nesta crise já não parece coisa de pobre comer-se sopa, pois quando as crises nos visitam nós voltamos à sopa. E as crianças voltam às cantinas. Note-se que até há bem pouco tempo as cantinas escolares confrontavam-se não com o aumento da procura, mas sim com a debandada dos adolescentes que na hora das refeições trocavam a antiquada cantina pelo bar mais próximo, onde invariavelmente gastavam mais dinheiro e comiam muito pior. (Por ironia, nos estabelecimentos particulares de ensino, os alunos, até ao 9º ano, comem quase sempre nas cantinas, o que custa menos às famílias do que a opção pelo bar de muitos alunos do ensino público.) O aumento da procura das cantinas escolares não é portanto necessariamente uma má notícia. O que já me parece uma má notícia é o anúncio da abertura das cantinas escolares nas férias e sobretudo aos fins-de-semana, como já está a acontecer ou poderá vir a ocorrer em alguns agrupamentos de Faro, Trofa, Setúbal e Rio de Mouro.
Se o objectivo é ajudar famílias em dificuldades, disponibilizem-se-lhes alimentos que as crianças e as suas famílias confeccionem e comam em casa. Não se transforme a crise num pretexto para assistencializar as pessoas e quebrar os laços familiares. Quando as crianças vão comer à cantina escolar no sábado ou no domingo onde é que estão as suas famílias? Ficam em casa à espera que a junta de freguesia ou a paróquia abram uma cantina que sirva adultos? Ou talvez as famílias não existam ou funcionem muito mal e nesse caso falar de crise económica é um eufemismo para algo que de económico tem pouco.
Quando num dos seus livros de cozinha Jamie Oliver dá conta de que a resposta invariável dos seus interlocutores italianos sobre o local onde se comem as melhores massas ou a melhor polenta é a casa da "mamma" de cada um deles, está a falar de muito mais do que de cozinha.
Por cada criança que não acha a sopa da sua casa a melhor de todas ou que pelo menos não tem memória dos cheiros da sua cozinha pagamos um enorme custo social, económico e moral. Crianças a comerem ao fim-de-semana na cantina da escola pode ser uma solução numa emergência, mas não é uma resposta para a crise. Ensaísta
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