Hu Jintao na terra dos Fonsecas e dos Madureiras
Helena Matos, Público 2010-11-04
Não sei se os dirigentes chineses dão alguma importância à literatura que ao longo dos séculos os viajantes europeus produziram após terem viajado para a China. Se não o fazem é pena. Aprendiam imenso não sobre si mas sobre os outros, coisa que nesta fase imperial da sua existência lhes faz muita falta. Assim, caso o Presidente chinês que nos visita esta semana conhecesse a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, saberia que está a viajar para a terra dos criados dos Madureiras e dos Fonsecas. Ou seja, os portugueses que agora anseiam por que a China compre a sua dívida são os descendentes daqueles nove desgraçados que, estando presos em meados do século XVI na então muito distante China, não arranjaram melhor ideia do que travar entre si uma violenta discussão sobre quem "tinha melhor moradia na casa de el-rei nosso Senhor, se os Madureiras se os Fonsecas". Quer no século XVI quer no XXI alienamo-nos da gravidade da nossa situação, esgotando-nos em discussões que não fazem qualquer sentido nem no tempo nem no espaço em que estamos.
Quando alguém escrever a peregrinação destes nossos dias constatará que à beira da falência tivemos como grandes questões o casamento entre duas pessoas do mesmo sexo e que o nosso governo não só continuava a celebrar contratos de grandes obras públicas como ganhou eleições prometendo que dava cheques a bebés e computadores a criancinhas e garantido-nos que dávamos lições ao mundo em matéria de carro eléctrico.
O capítulo 115 da Peregrinação é o melhor retrato que alguém fez de nós. Aguentamos o indizível, temos a vida por um fio e quase não damos por isso pois o que conta é saber quem tem "melhor moradia na casa de el-rei nosso Senhor, se os Madureiras se os Fonsecas". E quando finalmente o óbvio se impõe chamamos-lhe desastre e não derrota: no século XVI, el-rei nosso Senhor perdeu a sua casa que é como quem diz Portugal perdeu a independência. No século XXI é duvidoso que alguém queira a nossa casa. Preferem que a paguemos em títulos de dívida. A quem? Ao senhor Hu Jintao que provavelmente olhará para nós com o mesmo ar de espanto e superioridade que em 1544 aferrou o promotor de justiça que nos confins da China se deparou com aqueles nove desgraçados portugueses combatendo entre si furiosamente por causa dos Madureiras e dos Fonsecas.
De qualquer modo a visita do Presidente chinês talvez crie uma oportunidade para que alguém ouse perguntar-lhe sobre a situação do Nobel da Paz, Liu Xiaobo. E sobretudo para que sejamos capazes de nos interrogar a nós mesmos por que razão os opositores às ditaduras de direita são apresentados como resistentes, oposicionistas, socialistas, comunistas ou democratas-cristãos enquanto que no caso das ditaduras de esquerda só temos dissidentes.
Liu Xiaobo, tal como os presos políticos de Cuba, é um dissidente porque é reprimido por um partido comunista. Não tem direito sequer a que se lhe reconheça uma ideologia. Existe e isso já é uma afronta. O dissidente é um produto do totalitarismo estatista: indivíduos reduzidos a si mesmos e que na absoluta impossibilidade de se organizarem enquanto oposição transformam o acto de existir numa forma de resistência.
Não sei se os dirigentes chineses dão alguma importância à literatura que ao longo dos séculos os viajantes europeus produziram após terem viajado para a China. Se não o fazem é pena. Aprendiam imenso não sobre si mas sobre os outros, coisa que nesta fase imperial da sua existência lhes faz muita falta. Assim, caso o Presidente chinês que nos visita esta semana conhecesse a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, saberia que está a viajar para a terra dos criados dos Madureiras e dos Fonsecas. Ou seja, os portugueses que agora anseiam por que a China compre a sua dívida são os descendentes daqueles nove desgraçados que, estando presos em meados do século XVI na então muito distante China, não arranjaram melhor ideia do que travar entre si uma violenta discussão sobre quem "tinha melhor moradia na casa de el-rei nosso Senhor, se os Madureiras se os Fonsecas". Quer no século XVI quer no XXI alienamo-nos da gravidade da nossa situação, esgotando-nos em discussões que não fazem qualquer sentido nem no tempo nem no espaço em que estamos.
Quando alguém escrever a peregrinação destes nossos dias constatará que à beira da falência tivemos como grandes questões o casamento entre duas pessoas do mesmo sexo e que o nosso governo não só continuava a celebrar contratos de grandes obras públicas como ganhou eleições prometendo que dava cheques a bebés e computadores a criancinhas e garantido-nos que dávamos lições ao mundo em matéria de carro eléctrico.
O capítulo 115 da Peregrinação é o melhor retrato que alguém fez de nós. Aguentamos o indizível, temos a vida por um fio e quase não damos por isso pois o que conta é saber quem tem "melhor moradia na casa de el-rei nosso Senhor, se os Madureiras se os Fonsecas". E quando finalmente o óbvio se impõe chamamos-lhe desastre e não derrota: no século XVI, el-rei nosso Senhor perdeu a sua casa que é como quem diz Portugal perdeu a independência. No século XXI é duvidoso que alguém queira a nossa casa. Preferem que a paguemos em títulos de dívida. A quem? Ao senhor Hu Jintao que provavelmente olhará para nós com o mesmo ar de espanto e superioridade que em 1544 aferrou o promotor de justiça que nos confins da China se deparou com aqueles nove desgraçados portugueses combatendo entre si furiosamente por causa dos Madureiras e dos Fonsecas.
Dissidente e resistente: descubra as diferenças
Não sei se a dimensão da nossa dívida e o papel que nela desempenha a República Popular da China levará a que se esqueçam aqueles assuntos - como os direitos humanos - que tão mediáticos são aquando das visitas dos dirigentes dos países democráticos como Israel, os EUA ou a Colômbia. De qualquer modo a visita do Presidente chinês talvez crie uma oportunidade para que alguém ouse perguntar-lhe sobre a situação do Nobel da Paz, Liu Xiaobo. E sobretudo para que sejamos capazes de nos interrogar a nós mesmos por que razão os opositores às ditaduras de direita são apresentados como resistentes, oposicionistas, socialistas, comunistas ou democratas-cristãos enquanto que no caso das ditaduras de esquerda só temos dissidentes.
Liu Xiaobo, tal como os presos políticos de Cuba, é um dissidente porque é reprimido por um partido comunista. Não tem direito sequer a que se lhe reconheça uma ideologia. Existe e isso já é uma afronta. O dissidente é um produto do totalitarismo estatista: indivíduos reduzidos a si mesmos e que na absoluta impossibilidade de se organizarem enquanto oposição transformam o acto de existir numa forma de resistência.
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