E se o sonho da moeda única acabar em desastre?

Público, 2010-11-26 José Manuel Fernandes
Tudo leva a crer que, pelo menos no futuro mais próximo, os PIIGS serão sempre PIIGS. E por culpa própria

Há uma razão simples, crua, para esta semana vários líderes europeus, de Angela Merkel a Herman van Rompuy, terem dito que o euro estava em risco: a crise mostrou que o actual edifício da moeda única não tem forma de se manter de pé. Pode ser amparado, mas nunca sobreviverá tal como o conhecemos. Resta saber se pode ser reconstruído, mas já lá vamos.

Primeiro que tudo, o que é que se passou com a Irlanda? O que é que levou um país cujo produto per capita é sensivelmente o dobro do português, com uma economia privada saudável, um país com um salário mínimo três vezes mais elevado do que o nosso, a adoptar uma redobrada austeridade que passa, também, por reduzir esse salário mínimo? Talvez esse mesmo salário mínimo seja um entre muitos sintomas de alguns dos maus hábitos que levaram o "tigre celta" a engordar e a perder os seus reflexos.

Entendamo-nos: ao contrário do que muitos repetem por aí, há muita coisa que nos aproxima da Irlanda. E o pior é que o que nos aproxima da Irlanda são os defeitos comuns, não as virtudes que esta tinha e ainda tem. Apesar da crise bancária.

Esta semana, num texto no Financial Times, um antigo taoiseach (nome dado ao primeiro-ministro na Irlanda), Garret FitzGerald, atribuía os males do seu país a, no início desta década, se ter aumentado a despesa pública, o que provocou um aumento de preços e salários que degradou a competitividade da economia e permitiu um boom imobiliário irresponsável; esse boom, por seu turno, gerou impostos que criaram a ilusão de que o orçamento estava equilibrado quando já não era sustentável. A irresponsabilidade de alguns bancos fez o resto. Num outro texto, este bem mais colorido e publicado na Spectator, Kevin Myers, um colunista do Irish Independent, explicava como um mirabolante plano de novas auto-estradas, gastos sumptuários nas empresas públicas e reformas milionárias dos bonzos do regime tinham contribuído para o desastre. Ou seja, males que também nos são familiares...

Mas isto é a parte má da Irlanda, aquela que nos faz sentir (à excepção do sistema bancário) relativamente parecidos. A parte boa é aquela que está agora em risco: um tecido económico pujante que beneficia de um IRC especialmente baixo (apenas 12,5 por cento, mas mesmo assim capaz de gerar receitas em percentagem do PIB semelhantes às do IRC alemão), de uma mão-de-obra qualificada, de muito investimento estrangeiro e da especialização em dois sectores de ponta, as novas tecnologias e os produtos farmacêuticos. Este sector privado é tão competitivo que, apenas por efeito das medidas de austeridade já tomadas, está a recuperar parte da sua competitividade. Mais: a Irlanda, ao contrário de Portugal, da Espanha ou da Grécia, está de novo perto de ter uma balança de transacções positiva.

Apesar da irritação alemã com o baixo valor da taxa de IRC na Irlanda, a verdade é que, muito por efeito do sector exportador, o antigo "tigre celta" esteve sempre mais próximo de ser um "bom aluno" do clube da moeda única do que Portugal ou a Grécia. Esta última nem se esforçou, tratando de aldrabar alegremente os seus números, algo que a eurocracia tolerou. Já Portugal, para além de ter sido o primeiro país a incumprir o Pacto de Estabilidade, não cresce há dez anos e tem um desequilíbrio estrutural nas contas externas que gera uma dívida, entre Estado e particulares, que ninguém sabe como ou quando poderá ser paga.

Sucede que quando a Alemanha aceitou trocar a reunificação pelo euro - assim abandonando o seu adorado marco - impôs apenas uma parte das condições necessárias à criação de uma união monetária realmente saudável. Muitos na altura defenderam - até por se oporem ao euro - que, para 16 Estados partilharem a mesma moeda, não bastava limitar os défices e as dívidas públicas, era também necessário harmonizar políticas fiscais e, sobretudo, criar mecanismos de transferência de recursos para acudir a situações de crise regionais. Isso não foi feito e, é bom dizê-lo com clareza, não podia ser feito, pois iria contra a vontade dos cidadãos da maioria desses 16 Estados. Para além disso, o défice de legitimidade democrática das instituições europeias não teria autorizado então, como não autoriza hoje, que se transfiram para as autoridades da UE mais competências de tipo federal.

O resultado desta união monetária coxa está à vista nesta crise. A Alemanha, mais alguns vizinhos bem-comportados, mantiveram-se fiéis aos velhos princípios do marco, uma moeda forte que, para coexistir com economias competitivas, implicava que estas aumentassem constantemente a sua produtividade. Isso foi exigindo reformas que uns fizeram e outros não. Os que não fizeram já estão ou estarão na situação da Grécia e de Portugal, isto é, prisioneiros de uma moeda única que não pode ser desvalorizada e encerrados numa união monetária onde todos são supostamente iguais mas há uns mais iguais do que outros quando chega a hora de ir pedir dinheiro emprestado. Durante quase dez anos foi possível iludir esta situação devido à descida das taxas de juro e a os mercados tratarem os países da periferia quase tão bem quanto tratam a Alemanha. Esse tempo acabou e não será apenas uma sucessão de bail-outs que o fará regressar.

O que quer dizer que, pelo menos num futuro próximo, os PIIGS serão sempre PIIGS. E por culpa própria.

Está na moda, mesmo assim, culpar a Alemanha e Angela Merkel pelas dores dos mal-comportados. O colunista do Financial Times Martin Wolf tem sido mesmo uma das vozes mais críticas, chegando a exigir aos alemães que consumam mais bens importados sem se perceber bem por que hão-de estes trocar os seus BMW por Fiat ou Renault. Já o historiador Timothy Garton Ash pede um gesto de grandeza à chanceler: "Frau Bundeskanzlerin, a História está a bater à sua porta", escrevia ontem no The Guardian. E que pede ele? Que, em nome da Europa, a Alemanha se torne 30 por cento "menos alemã". E que os outros países consigam ser 70 por cento "mais alemães". Sinceramente, não acho que seja um pedido muito razoável.

Também não creio que, ao contrário do que tem sido sugerido, o problema esteja na coragem ou falta de coragem de Frau Merkel para enfrentar o descontentamento do seu eleitorado. O problema está mesmo em que ninguém sabe realmente o que fazer. Um bom exemplo disso mesmo é dado pela possível passagem do actual fundo europeu de emergência a um mecanismo permanente de assistência a países em dificuldade. Os especialistas convergem em que tal mecanismo deva co-responsabilizar o sistema financeiro em caso de crise num determinado país, até para obrigar esse sistema a actuar de forma mais cuidadosa. Porém, ao falar no assunto, Merkel provocou uma tempestade nos mercados apesar só se preverem mudanças para 2013. Sugeriu-se logo que devia ter ficado calada, mas não se disse quando deveria, em alternativa, abrir uma discussão que será necessariamente demorada no seio da União Europeia. Advogou-se, no fundo, o adiamento e dissimulação.

Mais uma vez, também agora alguma coisa será feita. Talvez antes, talvez depois, de chegar a vez de Portugal ser obrigado a pedir ajuda. No entanto, a verdade é que a moeda única parece presa no seu próprio labirinto, incapaz de servir ao mesmo tempo aos países do marco e aos países do escudo ou do dracma. É insustentável, por exemplo, a manutenção das actuais diferenças de juros no seio da mesma união monetária - umas economias não podem estar a financiar-se a dois por cento e outras a sete por cento. Mas nenhuma solução que não passe por um "governo económico" inatingível no actual quadro político - e, a meu ver, intolerável porque insufragável pelos cidadãos - alteraria, se alterasse, os actuais desequilíbrios.

Por isso vou escrever o que nunca pensei escrever: é tempo de pensar em alternativas à actual arquitectura da moeda única para que o seu eventual fracasso não arraste consigo a obra muito maior e mais importante que é a União Europeia. Jornalista (twitter.com/jmf1957)


P.S.: Duas coisas impressionaram-me na greve geral. Uma foi a simpatia que esta suscitou mesmo entre a maioria de portugueses que a ela não aderiu, sinal de que os cidadãos estão saturados e, ao mesmo tempo, ansiosos, para não dizer aflitos. A outra foi a quase desistência do Governo, que desapareceu dos radares (por onde andou Sócrates?) e, quando aparecia, não sabia que dizer, sinal de que está psicologicamente derrotado e politicamente desorientado. A situação parece madura para o desembarque do FMI.

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