A política como redenção
Público, 2010-11-16 Pedro Lomba
Estão a passar 30 anos sobre o acidente que causou a morte de Sá Carneiro. Para assinalar a data começaram a sair alguns livros importantes sobre a vida e o percurso político do fundador do PSD. As memórias de Conceição Monteiro, a sua secretária, uma nova biografia, escrita pelo director da revista Sábado, Miguel Pinheiro, e uma reedição oportuna: Francisco Sá Carneiro, Solidão e Poder, de Maria João Avillez, publicado pela primeira vez em 1981.
Escrito logo após a morte de Sá Carneiro, é difícil negar que Avillez acertou nas suas intuições. A sua biografia não pretende ser uma biografia puramente histórica ou política. Este livro ensaia algo diferente. Uma espécie de combinação entre política, história e psicologia. Uma biografia que nos mostra um Sá Carneiro que constrói o seu percurso político no remoinho dos seus desastres pessoais e na impaciência das suas convicções.
Por isso Maria João Avillez dá tanta importância ao acidente, ao acaso, ao insucesso, à contrariedade; e o Sá Carneiro que o seu livro nos apresenta cumpre o seu destino na reacção contra a sua circunstância. Nenhum político português, nos anos seguintes à Revolução, gerou o nível de irrisão que ele gerou; nenhum recebeu a instabilidade e as cisões internas com que de dentro do PSD o prendaram; nenhum viu a sua vida pessoal ser transformada num facto político.
O que Maria João Avillez sugere é a existência de um contínuo entre a experiência pessoal e a experiência política de Sá Carneiro. Não é só no romance "proibido" com Snu Abecassis que esse contínuo é evidente. Nem nas suas várias intuições de morte prematura, nos vários problemas de saúde que foi tendo praticamente em simultâneo com a sua actividade política. É na ascensão de um homem que lúcida e obstinadamente não evita a adversidade; pelo contrário, recebe-a e procura um caminho luminoso, arriscando cada passo, convencido de estar a perseguir o rumo certo. Um caso de "solidão e poder", como diz bem Avillez.
Em Guerra e Paz, naquele longo capítulo em que Tolstoi expõe a sua visão da História, diz o escritor russo que "se nós assumirmos, como fazem os historiadores, que os grandes homens conduzem outros homens para a realização de determinados fins - a grandeza da Rússia ou da França, o equilíbrio de poder na Europa, a propagação das ideias da Revolução, torna-se impossível explicar os fenómenos da História sem introduzir os conceitos de acaso e génio."
Acaso e génio. Onde estiveram o acaso e o génio de Sá Carneiro? No conjunto, acaso e génio são o que encontramos nas dificuldades que Sá Carneiro experimentou como político, nas suas dificuldades em se afirmar como líder de um espaço político fragilizado e disperso: o espaço da direita democrática em Portugal. Mas que não o desviaram de um destino inapelável que o conduziu a primeiro-ministro, que consolidou a democracia política em Portugal, que sedimentou as bases do PSD.
Que Sá Carneiro ganhou assim toda uma complexidade humana e política, está documentado neste livro. Os fracassos da Ala Liberal, do 1.º Governo Provisório, da radicalização esquerdista do PREC, da dissidência e instabilidade do PSD, da ameaça constante de dissolução do partido, das muitas provações pessoais não foram na verdade fracassos.
Quando olhamos para muitos dos políticos de hoje, é inútil dizer que lhes falta a convicção, a transparência, o sentido de risco, o patriotismo moral de Sá Carneiro. Muitos deles vieram do nada e dificilmente irão escapar à memória curta dos povos. Mas também lhes falta outra verdade mais profunda - a verdade que a meu ver ressalta desta biografia de Maria João Avillez: a de que um grande político, um grande líder político, não pode ser alguém unicamente apreciado pelos seus méritos, sobretudo o mérito de conquistar ou persistir no poder. É também alguém que conquistou uma espessura e uma autoridade que só se podem conquistar na perda e no embate, nos ímpetos que parecem irreflectidos mas são meditados, nos insucessos que parecem definitivos mas são provisórios.
Sá Carneiro passou por tudo isso. Como Maria João Avillez nos mostra nesta sua biografia, esteve várias vezes perto do abismo e da destruição. Não escondeu nenhuma das suas fraquezas. Ultrapassou-as e chegou onde quis. A política foi para ele uma espécie de redenção. Jurista
Escrito logo após a morte de Sá Carneiro, é difícil negar que Avillez acertou nas suas intuições. A sua biografia não pretende ser uma biografia puramente histórica ou política. Este livro ensaia algo diferente. Uma espécie de combinação entre política, história e psicologia. Uma biografia que nos mostra um Sá Carneiro que constrói o seu percurso político no remoinho dos seus desastres pessoais e na impaciência das suas convicções.
Por isso Maria João Avillez dá tanta importância ao acidente, ao acaso, ao insucesso, à contrariedade; e o Sá Carneiro que o seu livro nos apresenta cumpre o seu destino na reacção contra a sua circunstância. Nenhum político português, nos anos seguintes à Revolução, gerou o nível de irrisão que ele gerou; nenhum recebeu a instabilidade e as cisões internas com que de dentro do PSD o prendaram; nenhum viu a sua vida pessoal ser transformada num facto político.
O que Maria João Avillez sugere é a existência de um contínuo entre a experiência pessoal e a experiência política de Sá Carneiro. Não é só no romance "proibido" com Snu Abecassis que esse contínuo é evidente. Nem nas suas várias intuições de morte prematura, nos vários problemas de saúde que foi tendo praticamente em simultâneo com a sua actividade política. É na ascensão de um homem que lúcida e obstinadamente não evita a adversidade; pelo contrário, recebe-a e procura um caminho luminoso, arriscando cada passo, convencido de estar a perseguir o rumo certo. Um caso de "solidão e poder", como diz bem Avillez.
Em Guerra e Paz, naquele longo capítulo em que Tolstoi expõe a sua visão da História, diz o escritor russo que "se nós assumirmos, como fazem os historiadores, que os grandes homens conduzem outros homens para a realização de determinados fins - a grandeza da Rússia ou da França, o equilíbrio de poder na Europa, a propagação das ideias da Revolução, torna-se impossível explicar os fenómenos da História sem introduzir os conceitos de acaso e génio."
Acaso e génio. Onde estiveram o acaso e o génio de Sá Carneiro? No conjunto, acaso e génio são o que encontramos nas dificuldades que Sá Carneiro experimentou como político, nas suas dificuldades em se afirmar como líder de um espaço político fragilizado e disperso: o espaço da direita democrática em Portugal. Mas que não o desviaram de um destino inapelável que o conduziu a primeiro-ministro, que consolidou a democracia política em Portugal, que sedimentou as bases do PSD.
Que Sá Carneiro ganhou assim toda uma complexidade humana e política, está documentado neste livro. Os fracassos da Ala Liberal, do 1.º Governo Provisório, da radicalização esquerdista do PREC, da dissidência e instabilidade do PSD, da ameaça constante de dissolução do partido, das muitas provações pessoais não foram na verdade fracassos.
Quando olhamos para muitos dos políticos de hoje, é inútil dizer que lhes falta a convicção, a transparência, o sentido de risco, o patriotismo moral de Sá Carneiro. Muitos deles vieram do nada e dificilmente irão escapar à memória curta dos povos. Mas também lhes falta outra verdade mais profunda - a verdade que a meu ver ressalta desta biografia de Maria João Avillez: a de que um grande político, um grande líder político, não pode ser alguém unicamente apreciado pelos seus méritos, sobretudo o mérito de conquistar ou persistir no poder. É também alguém que conquistou uma espessura e uma autoridade que só se podem conquistar na perda e no embate, nos ímpetos que parecem irreflectidos mas são meditados, nos insucessos que parecem definitivos mas são provisórios.
Sá Carneiro passou por tudo isso. Como Maria João Avillez nos mostra nesta sua biografia, esteve várias vezes perto do abismo e da destruição. Não escondeu nenhuma das suas fraquezas. Ultrapassou-as e chegou onde quis. A política foi para ele uma espécie de redenção. Jurista
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