Não somos sozinhos, não morremos sozinhos

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O Parlamento prepara-se para discutir, no dia 29 de maio, quatro Projetos de Lei que pretendem regular a prática não punível da eutanásia. Os Jesuítas em Portugal entendem ser seu dever tomar uma posição pública sobre esta questão.

Um debate insuficiente

O Parlamento prepara-se para discutir, no dia 29 de maio, quatro Projetos de Lei (PAN, BE, PEV e PS) que pretendem regular a prática não punível da eutanásia em casos de lesão incurável e de doença grave sem perspectiva de cura. Este debate surge na sequência de uma Petição Pública dirigida à Assembleia da República em fevereiro de 2016, assinada por diversas personalidades que pediam a “despenalização da morte assistida”.

Era intenção dos seus signatários alertar para o sofrimento e solidão que tantos experimentam na fase terminal da vida. Sofrimento que, em caso algum, podemos julgar.

Com a legitimidade que lhe é própria, a Assembleia da República acolheu este debate como resposta a um documento assinado por um número significativo de cidadãos, mas consideramos que a reflexão que se gerou na sociedade não foi suficientemente esclarecedora. A pergunta que importa fazer é se o caminho preconizado pela petição e acolhido pelos distintos Projetos de Lei é o que melhor responde à necessidade de acompanhar quem se aproxima do final da vida. E quanto a isso a nossa convicção é clara: não! O próprio Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV), organismo que mais se esforçou por dinamizar esta discussão, reconhece no parecer negativo dado ao Projeto de Lei do PAN que existe “uma séria falta de informação por parte dos cidadãos” e que é necessário formar melhor as pessoas para as “decisões em final de vida.”

Há uma enorme confusão de conceitos que não será dissipada com o debate do dia 29. Da nossa parte, estamos disponíveis para continuar a participar de modo franco e aberto no diálogo, mas lamentamos que haja, da parte de alguns deputados, a tentação de se fecharem à sociedade civil e de se precipitarem a apoiar uma lei sobre a qual muitos portugueses não estão esclarecidos, não compreendendo sequer as suas consequências.

A pergunta que importa fazer é se o caminho preconizado pela petição e acolhido pelos distintos Projetos de Lei é o que melhor responde à necessidade de acompanhar quem se aproxima do final da vida. E quanto a isso a nossa convicção é clara: não!


O engano da autonomia

Na exposição dos motivos dos diferentes projetos há uma palavra que funciona como refrão: autonomia. Contudo, a ideia de autonomia que ali se pressupõe não é própria de um Estado Social de Direito, alicerçado em relações de cooperação e interdependência, mas de um mundo em que cada um decide isolado e por si. No limite, essa forma de entender o ser humano inviabiliza a própria ideia de sociedade e mesmo a necessidade de um Estado Social em que somos corresponsáveis uns pelos outros.

Um argumento apresentado por todos os Projetos de Lei é que um Estado que impeça a eutanásia é um Estado paternalista. Mas há aqui um engano. Insistindo que cabe ao doente, de forma livre e sem pressões, a decisão quanto à eutanásia, todas as propostas legislativas deixam na mão do médico a decisão final quanto à legitimidade do pedido feito pelo doente. É ao médico que cumpre avaliar se estão reunidos os requisitos para que a eutanásia tenha lugar. Se um doente recorrer de um parecer negativo dado por um médico, será sempre a um outro médico ou a uma comissão de especialistas que caberá a decisão final de dar ou não seguimento à eutanásia ou ao suicídio assistido. O “paternalismo” que o Estado recusa para si mesmo, parece querer impô-lo aos médicos e especialistas, em contradição com o juramento de Hipócrates pelo qual os médicos afirmam: “Guardarei respeito absoluto pela Vida Humana desde o seu início, mesmo sob ameaça e não farei uso dos meus conhecimentos médicos contra as leis da Humanidade.”

A concretização de um pedido de eutanásia ou de suicídio assistido será um ato médico que passará pela administração de fármacos por parte de um médico ou enfermeiro (eutanásia) ou pela ingestão por parte do doente, com assistência médica (suicídio assistido), de algo com o objetivo de lhe tirar a vida. Não está em causa desligar algum suporte artificial de vida ou interromper tratamentos desnecessários, mas provocar ativa e intencionalmente a morte. Ora isto contraria a opinião expressa por vários bastonários da ordem dos médicos, tanto junto do Presidente da República, como numa carta assinada em 2016 em que afirmavam: “Em nenhuma circunstância e sob nenhum pretexto, é legítimo à sociedade procurar induzir os médicos a violar o seu código deontológico e o seu compromisso com a vida.” Efetivamente, o código deontológico publicado em 2016 proíbe ao médico, no nº 2 do seu artigo 65, a possibilidade de colaborar num processo de eutanásia. Terão os deputados o direito de forçar os médicos a alterar os seus códigos? Quererão ser imunes ao apelo de bastonários e de outros profissionais de saúde?

Consideramos que não faz sentido que os deputados coloquem nas mãos de um médico a responsabilidade de decidir se, diante de uma doença terminal, o argumento “não querer ser um peso para os filhos” ou “não querer sofrer por os ver sofrer” é um motivo suficiente para dar a morte ou para a negar. Para qualquer profissional esta escolha constituirá certamente um dilema.

Em vez de se oferecer verdadeira autonomia, estar-se-á a proporcionar maior isolamento e solidão. Ainda que o desejo de muitos dos que defendem a eutanásia seja aliviar o sofrimento, importa lembrar que o caminho que mais previne o sofrimento é o que evita o isolamento. Não acreditamos que a eutanásia seja esse caminho.

Ainda que o desejo de muitos dos que defendem a eutanásia seja aliviar o sofrimento, importa lembrar que o caminho que mais previne o sofrimento é o que evita o isolamento. Não acreditamos que a eutanásia seja esse caminho.


Nunca somos sozinhos

Na argumentação que enquadra os Projetos de Lei é reconhecida a importância do reforço dos cuidados paliativos. Registe-se positivamente o esforço já efetuado no desenvolvimento de um plano estratégico para os cuidados paliativos. Acreditamos que dará um contributo positivo para que mais pessoas tenham acesso a estes cuidados, independentemente da sua condição económica e social. O que atualmente ainda não é uma realidade. Esta razão, por si só, recomendaria alguma prudência na aprovação da lei da eutanásia. Mais uma vez, cai o argumento da liberdade e autonomia dos doentes, usado pelos defensores da aprovação da lei, uma vez que no atual Sistema de Saúde, isso não parece estar garantido de modo equitativo.

Um dos grandes intentos dos que defendem a despenalização da eutanásia é o de que a morte seja “assistida”. Mas será que uma equipa médica e um grupo de amigos e familiares reunidos à hora marcada para verem o doente ser morto ou matar-se garantem verdadeira assistência?

Importa que acompanhemos mais os processos de doença, que se criem apoios efetivos para os cuidadores que optam por cuidar de familiares doentes, que não aconteça que um familiar trabalhador que acompanhe por mais de 15 dias um doente terminal enfrente sérios constrangimentos.

Importa apostar em cuidados e processos que ajudem o doente a reconhecer a sua dignidade como pessoa. Não se trata de impor um “modelo cultural” ou de pensamento, trata-se de recusar a ideia de que apenas a existência como produtores ou consumidores nos confere dignidade. O reconhecer-se como digno depende mais de poder terminar a sua vida em paz, reconciliado, em relação com os outros do que em poder “escolher sozinho” a hora e o modo da morte. Todos estes fatores contribuem para a qualidade humana da relação com a pessoa doente e ajudam a diminuir a perceção do seu sofrimento.

Numa sociedade cada vez mais envelhecida, o nosso empenho tem de estar em criar condições para quem envelhece, em ajudar quem sofre lesões irreversíveis ou adoece gravemente a sentir-se acompanhado e protegido. Estes são os verdadeiros sinais de progresso humano e civilizacional. Importa que essa oportunidade seja dada a todos, especialmente aos que não têm recursos próprios. Como sociedade, é de tudo isto que não nos podemos demitir. Involuntariamente, aprovar a eutanásia pode ser um convite a esta demissão e, também por isso, não o devemos consentir.

O que é determinante é que se desenvolva uma cultura em que o normal seja perguntar a cada um: “como desejas viver até ao fim?”


Os cuidados paliativos pressupõem promover a qualidade de vida e acompanhar os doentes integrados na sua rede familiar e de relações. Esse acompanhamento é feito desde o momento do diagnóstico e não apenas quando já se esgotaram as medidas curativas. Esses mesmos cuidados paliativos incluem a possibilidade de acompanhar famílias enlutadas. Ainda assim, sabemos que a mais perfeita rede de cuidados paliativos não responderá a todas as necessidades e não reduziria a zero os pedidos de eutanásia. Toda a medicina é limitada e incapaz de resolver todos os problemas.

Mas o melhor modo de acompanhar os processos de morte é recordar que não somos sozinhos, nem morremos sozinhos. A vida humana implica dependência e interdependência e por isso não faz sentido que uma lei possa sugerir a cada um: “decide sozinho quando queres morrer”. O que é determinante é que se desenvolva uma cultura em que o normal seja perguntar a cada um: “como desejas viver até ao fim?”

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