O Presidente e a eutanásia
GRAÇA FRANCO RR ONLINE 07.05.2018
Concordo com o Presidente: talvez só não tenha discutido a eutanásia quem não quis. O problema, no entanto, é anterior a esse: é o de saber se a maioria do povo português chegou sequer a perceber a importância desse debate como aquilo que ele exatamente significa.
O Presidente da República concedeu à Renascença e ao Público uma excelente e substancial entrevista, onde aborda com profundidade múltiplos temas. Em matéria de Orçamento, como já disse Jacinto Lucas Pires, lançou “uma bomba”. Eunice Lourenço, uma das entrevistadoras, já sublinhou a importância dos recados à morosidade da justiça em matéria de corrupção, eu limitar-me-ei a comentar, o tema da eutanásia, que no meio de tanto, arrisca perder-se.
Marcelo Rebelo de Sousa considerou que o debate em torno da questão da eutanásia foi suficientemente amplo para legitimar que se passe à segunda fase, ou seja, à fase da decisão política. Desenganem-se, todavia, os que leram esta declaração como um compromisso em como não vetará em caso algum a lei que acabar por aterrar em cima da sua secretária. Marcelo mantêm intacta a sua margem de manobra, mas só a usará plenamente se o clamor social contra a lei se fizer ouvir suficientemente alto para poder ser usado por Belém como um argumento consistente contra uma espécie de vanguardismo “legalista”, sem respaldo numa sociedade tolhida pela anomia do indiferentismo.
Estão contra? Mostrem-se. Saiam dos armários confortáveis das disciplinas partidárias. Preparem-se para dar contas a quem os elegeu do voto que utilizarem em seu nome, porque, por maior que tenha sido o debate naquele pequeníssimo grupo dos que se deram conta da importância da sua existência, a verdade é que, maioritariamente, o povo de Norte a Sul está longe de perceber que nos próximos dias o Parlamento votará no dourado silêncio das salas e dos seus corredores uma questão de “vida ou de morte” que mudará para futuro, de forma drástica e radical, os sinais enviados à sociedade, bem como a forma como esta avalia o “valor” da vida dos seus mais frágeis.
Concordo com o Presidente: talvez só não tenha discutido a eutanásia quem não quis. O problema, no entanto, é anterior a esse: é o de saber se a maioria do povo português chegou sequer a perceber a importância desse debate como aquilo que ele exatamente significa: mais um corte estrutural no sistema de valores que sustenta a própria sociedade e lhe dá uma identidade própria, mudando a forma como atribui significado e valoriza toda a vida e a “vida toda”, seja esta a vida tida por “útil” ou inútil, “produtiva” ou “improdutiva”.
Não por acaso, este tema esteve fora da campanha eleitoral (exceção feita ao PAN) e foi mesmo estrategicamente retirada dos programas onde antes já constara como tema essencial (caso do BE). Por algum motivo ninguém trouxe à baila esta questão polémica, nada levando a crer que seria discutida e aprovada legislação nesta área, pelo menos durante a atual legislatura.
É este o ponto. Estou aliás convencida de que mesmo Marcelo não deixará de ponderar esse facto quando a legislação chegar ao seu gabinete pronta para promulgação. Não a analisará como alguém que é pessoalmente “pró” ou “contra” a lei em concreto que sair da Assembleia da República. Como já tinha antes referido e repetiu na entrevista à Renascença, não fará uma avaliação de consciência em função das suas convicções religiosas e/ou morais. O “católico” que é Presidente não avaliará a validade do diploma como Presidente “católico”. Embora as duas condições não possam deixar de se entrecruzar.
A decisão será tomada “em função da análise que que o PR fará da sociedade portuguesa no momento em que for solicitado a ponderar se promulga ou não”. Se dessa avaliação concluir que a lei merece o veto político, não deixará de o usar apenas por temer que este seja apoucado ou lido em função da sua pretensa catolicidade. Mas se o debate a que apelou, numa primeira fase, é visto como suficientemente amplo restará ainda ao presidente outro argumento para o veto que não seja o das suas convicções pessoais?
A verdade é que, por mais extenso que tenha sido o “debate” organizado em torno desta matéria, a maioria dos portugueses não sentiu nenhuma urgência nem apetência para participar nele. Apostaria até que mesmo quando ele chegou às TVs, com exceção dos “militantes” pró e contra, a maioria terá mudado olimpicamente de canal logo que se apercebeu que o tema era mais uma “fracturância” trazida à liça pelo Bloco.
Na raiz do direito não raro está uma prática social, “o costume”, a realidade não escrita que, ao impor-se, vem reivindicar a sua clarificação para evitar confusões ou derivas perigosas. A Lei resulta, assim, de uma normal necessidade de regulação da vida social. Na Holanda uma das manchetes mais chocantes da aprovação da lei que descriminalizou e liberalizou a prática da eutanásia citava um médico que declarava que “com a nova lei aprovada nada mudou”.
Parte da discussão dos meses anteriores já se prendia com a necessidade de evitar abusos praticados no próprio sistema de saúde, onde parecia existir um conceito demasiado lato de recusa do encarniçamento terapêutico, com médicos a antecipar intencionalmente o fim da vida dos doentes em sofrimento, alegando uma pretensa “compaixão” pelo pedido reiterado, de maneira ainda que informal, de morte por parte dos respetivos pacientes em sofrimento e em fase terminal.
Não me custa muito a acreditar que fosse assim. Segui de perto e envolvi-me mesmo na discussão que pouco tempo depois ocorreu na Bélgica, onde a sociedade caminhava há demasiado tempo para a mesma conceção utilitarista da vida. E onde a solidão batia cedo demais à porta dos mais velhos de todos os estratos sociais e estilos de vida. Famílias de dimensão muito reduzida, precocemente separadas (e nem sempre plenamente reestruturadas), originam relações que, vistas do Sul, rondam uma tal “formalidade” e distância entre e pais e filhos que apela à consagração do “direito a dispor da própria vida de forma estritamente individualista”. Depois da aprovação da lei na Holanda os números de eutanasiados mostraram-se constantes, recuando até ligeiramente.
Na Bélgica a temida “rampa deslizante” confirmou que, aberta a caixa de Pandora, a sociedade interiorizou o novo direito “da morte a pedido” como uma correspondente pressão - ou seja, tornou-se um “dever” de proceder em conformidade. E isso corresponde, no fundo, a evitar vir a ser visto “como um fardo desnecessário para terceiros”, sejam eles filhos, sobrinhos, outros familiares ou simplesmente os restantes cidadãos contribuintes dos serviços de saúde. A ligeira descida dos eutanasiados no segundo ano de vigência da lei da Holanda induzia em erro os analistas e a verdade é que na Bélgica o número de eutanasiados nunca parou de crescer: dos dois mil passou a quatro mil e vai agora (dados de 2017) em mais de 8 mil. Entre eles recém-nascidos, a pedido dos pais, adolescentes com perturbações psíquicas e velhos dementes.
O sinal errado que a lei da eutanásia deu à sociedade pode reduzir-se no seguinte: se eu tenho o direito a evitar o meu sofrimento (seja ele ou não insuportável e esteja eu ou não em fase terminal, bastando um inexplicável sofrimento psíquico fruto de solidão, desamparo ou avanço da demência) então o reverso da medalha também se impõe naturalmente, levando-me a pensar até que ponto tenho eu efetivamente o direito a não exercer essa possibilidade que me é oferecida. Ou será que o simples facto de viver não se torna então a absurda ostentação do meu puro egoísmo? Se já não sirvo para nada, o que “sou” ainda? Se a lei vanguardista me disser que o meu Ser só se justifica em determinadas condições, a que chama “dignidade”, onde fica ficam reduzidos os princípios constitucionais da proteção do direito à vida e do valor da pessoa humana?
Comentários