O Estado (português) contra a Sociedade Civil
MÁRIO PINTO OBSERVADOR 2.11.2017
Razão têm os ex-ministros Roberto Carneiro, Marçal Grilo, Oliveira Martins e Nuno Crato, quando defendem que as escolas privadas podem e devem também ser integradas no serviço público de educação.
1. Este artigo, que corresponde a um convite honroso para participar nesta coluna semanal do jornal Observador, dedicada às questões da educação, teve esboçada uma versão anterior, focada na defesa da liberdade de escola e na não-discriminação negativa dos alunos das escolas privadas relativamente aos alunos das escolas do Estado — porque (no respeito da liberdade de escolha garantida pela Constituição) a todos é igualmente devida a gratuitidade do ensino obrigatório, e não apenas aos alunos das escolas do Estado.
Mas depois de ter visto e lido sobre o discurso do presidente dos Bombeiros Voluntários, que, em sessão pública, discursou rispidamente contra o primeiro ministro, em defesa da autonomia dos bombeiros voluntários e, no fundo, contra a sua nacionalização como «bombeiros profissionais» — isto é, funcionários do Estado —, pareceu-nos que havia uma analogia problemática, que valia a pena preferir como tema, a saber: a guerra do Estado Português contra a Sociedade Civil. Vejamos.
2. Tudo terá começado com o surgimento do Estado, quando a sociedade «primitiva», a sociedade sem Estado, se dividiu, ou foi dividida, entre a Sociedade Civil e o Estado, entendido este segundo a moderna definição sociológica de instância de poder (político) físico constritivo irresistível sobre a sociedade. Marx explicou esta divisão entre a sociedade e o Estado dizendo que foi a sociedade civil que primeiro se dividiu em duas classes sociais; e uma delas, a classe dominante porque proprietária, gerou depois o Estado contra a outra classe. Por isso, a sua proposta revolucionária visava o fim da extinção definitiva da propriedade privada e do Estado, para que renascesse (já muito mais evoluída técnica e economicamente) uma «sociedade terminal» sem classes e sem Estado. Se bem que era começando pela conquista violenta do Estado, para depois, e através de uma ditadura, acabar com a propriedade privada e a classe proprietária — contradição que Bakunine lhe objectou, dizendo-lhe que o Estado nunca se extinguiria a si próprio, o que a história confirmou, até ao presente.
3. Muito interessante é que, contra a tese de Marx, um famoso antropólogo e etnólogo nosso contemporâneo (infelizmente já falecido), o francês Pierre Clastres, autor de estudos de referência dos índios sul-americanos, designadamente os Guayaki, Guarani, Chulupi e Yanomami, defende e comprova uma tese oposta à de Marx. Ele explica que foi o surgimento de uma chefia com poder político constringente (pela força) sobre a sociedade, que a dividiu em classes. Isto ocorreu quando a chefia tradicional da sociedade primitiva, que não tem poderes constritivos de comando, ganhou esses poderes. É aí que surge o Estado, a divisão entre governantes e governados, de que depois nasce a divisão entre classes sociais. Clastres descobriu, nas sociedades primitivas que estudou, uma permanente resistência contra uma eventual chefia de comando constritivo. E daí o título do seu livro de referência: «A sociedade contra o Estado» («La societé contre l’État»). Na sua tese, a sociedade primitiva foi sempre, enquanto pôde, contra o surgimento do Estado, pela oposição a que o chefe tradicional ganhasse poderes de comando constritivo.
4. Ora, nós podemos hoje dizer que o receio das sociedades primitivas é justificado; porque a verdade é que, depois de ter nascido, o poder político constringente (Estado), embora variável na sua organização, foi de facto, por milénios e milénios, contra a sociedade civil. E só desde há cerca de duzentos anos, a gloriosa Revolução Liberal abriu uma nova era, verdadeiramente à escala da humanidade. Mas nem por isso ficou inteiramente resolvida, de uma vez para sempre, a questão do conflito entre a Sociedade Civil e o Estado. Longe disso: a questão das relações entre a Sociedade Civil e o Estado permanece como questão nuclear da teoria e da praxis constitucional e de toda a vida política contemporânea.
5. Apenas alguns flagrantes do Estado Português contra a sociedade civil (citando de memória sobre registos precisos). Veio não há muito na comunicação social, sem desmentido, que o ex-ministro da Saúde que criou o Serviço Nacional de Saúde, aliás com muito mérito, disse, num discurso público, em Coimbra, que era inadmissível que o sector privado da saúde fizesse concorrência ao Serviço Nacional de Saúde do Estado. Pouco tempo antes, numa entrevista a um jornalista da Rádio Renascença, o secretário geral da Intersindical, que é uma voz considerada como representativa do «centralismo democrático», defendeu que o chamado sector social, que é da iniciativa livre e democrática dos cidadãos, aliás previsto na Constituição, devia ser apenas supletivo da função social do Estado. Por seu lado, a actual equipa do Ministério da Educação, que se tem destacado por mudar o que vinha do Governo anterior com tanta pressa que nem sequer tem tempo para, como devia por lei, consultar o Conselho Nacional de Educação, privilegia ostensivamente a monopolização estadual do ensino escolar obrigatório gratuito, sem atender para nada ao direito de os pais escolherem a escola para os filhos, sem por isso sofrerem discriminações (que está garantido na Declaração Universal dos Direitos do Homem e também na nossa Constituição); nem ao direito e liberdade de escola dos cidadãos, ainda aqui sem discriminações da parte do Estado, e ainda por cima desleais. Depois de ter reduzido os contratos de associação, com isso provocando um largo despedimento de professores nas escolas privadas, agora readmite e consolida milhares e milhares de professores nas escolas do Estado. Trata-se de uma claríssima preferência em favor das escolas do Estado e dos professores do Estado, contra as escolas privadas e os seus professores, que ofende a Constituição, porque o Estado não pode discriminar entre cidadãos em função das suas legítimas iniciativas e escolhas. Algum tempo atrás, a secretária de Estado da Educação, em terras de Leiria, chegou ao ponto de, acerca do modo como investia no sistema educativo estadual e desinvestia nas escolas privadas com contrato de associação, se exprimir como se fosse proprietária do tesouro público e o seu poder arbitrário de investir fosse igual ao de um magnata capitalista. Compreende-se que no Governo a tenham mandado calar; mas não é certo que a tenham corrigido no que anda a fazer.
6. Mesmo nestes últimos dias, tivemos uma outra declaração governamental, simultaneamente a mais infeliz e a mais eloquente de todas, do secretário de Estado da Administração Interna, quando recomendou (citando sempre de memória e em resumo) que os cidadãos deveriam eles cuidar da sua própria segurança, isto falando no contexto dos incêndios florestais. Ora, como é sabidíssimo, a segurança pública (é dessa que se trata no combate aos incêndios florestais, e é dessa que o Ministério da Administração Pública trata), compete em exclusivo ao Estado, como função de soberania que é. E imaginemos. Se o dito secretário de Estado, em vez de ser da Administração Interna, fosse da Educação Escolar, área esta que não pertence ao monopólio do exercício de poderes de soberania, alguém admite que ele, por exemplo perante uma falha de escolas, recomendasse que os cidadãos deveriam eles próprios cuidar da rede escolar, suprindo as falhas do Estado? Conclusão. Aqui, em matéria de segurança pública, que entra nas funções de soberania, os cidadãos são estimulados a competir com o Estado. Ali, em matéria de educação escolar, que não é monopólio de soberania, o Estado discrimina negativamente a iniciativa dos cidadãos e discrimina-a ostensivamente. E nem se diga que o referido Secretário de Estado é uma voz isolada e dissonante. Parece que partidos que entre nós se arrogam como os mais estrénuos defensores do Estado social, se sentem agora algo indecisos sobre a cobertura financeira da solidariedade social devida aos que sofreram terrivelmente com os incêndios.
Perante esta evidência, poderá alguém dizer, à primeira vista: há aqui uma contradição. Pois bem, a contradição é apenas aparente, porque afinal esconde uma coerência, que é a da guerra do Estado contra a Sociedade Civil. No primeiro caso, é guerra pela negativa, quando nega ou regateia o que sabe que só ele pode dar: a segurança pública. No segundo caso, é guerra pela positiva, quando impõe ou privilegia a iniciativa estadual contra a iniciativa dos cidadãos, que aqui também a podem tomar, de direito e de facto: a educação escolar.
7. Este ponto merece reflexão crítica. Com efeito, só o Estado pode exercer as funções soberanas de segurança e de justiça públicas. Para isso, cobra impostos. E o que vemos? Que nem a segurança pública nem a justiça pública são bastantes e são inteiramente gratuitas. O Estado tem vindo a externalizar (é o termo) a prestação destas funções, na medida do que lhe é possível. Hoje, os chamados serviços de segurança privada (se bem que não exerçam poderes públicos) suprem, em medida significativa, a insuficiência da segurança pública, que é dever do Estado garantir inteira e gratuitamente. Quanto à justiça legal pública, alguém pode dizer que é totalmente gratuita? E que, por não ser suficientemente pronta, é suficiente? O que tem vindo a suceder é que o próprio Estado também aqui facilita uma externalização da justiça, designadamente por via da instituição das comissões de arbitragem. Os privados, sabedores das delongas, e dos imensos custos correspondentes, na justiça pública civil, que aliás não é inteiramente gratuita, optam pelas comissões de arbitragem, assim custeando e suprindo em parte as funções estaduais da justiça pública.
Entretanto, é raro o dia em que os partidos e sindicatos do estatismo não reivindiquem mais Estado e menos iniciativa privada nas prestações sociais do sistema nacional de solidariedade social, a ponto de, até na linguagem corrente, este sistema, se chamar «Estado social» — quando, na verdade, na Constituição e na realidade, ele é um sistema da República toda inteira, nas suas três fundamentais esferas: privada, pública e estadual, grosso modo (mas significativamente) em correspondência à esfera da família, da sociedade civil e do Estado. Anote-se que são aqueles três os domínios da República, segundo os melhores constitucionalistas do chamado neo-constitucionalismo, ou do Estado Constitucional, por exemplo, o alemão Peter Häberle e o italiano Paolo Ridola. E não apenas dois, como dizemos no discurso corrente entre nós, que distingue o privado para a Sociedade Civil e o público para o Estado. Reside aqui uma questão determinante da nova teorização constitucional, que se foca na relação entre a Sociedade Civil, que é constitucionalmente pluralista, e o Estado Constitucional «neutro». Rigor e razão têm, por isso — diga-se em aparte — os ex-ministros da Educação, Roberto Carneiro, Marçal Grilo, Oliveira Martins e Nuno Crato, quando defendem publicamente que as escolas privadas podem e devem também ser integradas no serviço público de educação escolar. Porque a esfera pública da educação escolar pertence à Sociedade Civil, não é a esfera estadual.
8. O princípio da subsidiariedade. Ora, é precisamente aqui que o princípio da subsidiariedade social entra como princípio regulador das iniciativas, quer sejam pessoais-privadas, pessoais-civis-públicas, ou entidades-políticas-estaduais, quando visam cumprir a justiça e a solidariedade entre membros da Sociedade republicana. Para que não suceda, com o Estado, como no caso do escuteiro que obrigou a velhinha a atravessar a rua para ele cometer uma boa acção. Pior ainda se, paradoxalmente, como no caso dos incêndios recentes, o Estado diz aos cidadãos que tratem de si mesmos, quando isso, como no caso, lhes é impossível em medida decisiva.
9. A exposição geralmente considerada como a melhor para definir o princípio da subsidiariedade social é a do Papa Pio XI, na sua Encíclica “Quadragesimo Anno” (de 15 de Maio de 1931), que diz assim: «Tal como é injusto subtrair aos indivíduos o que eles podem efectuar com a sua própria iniciativa e trabalho, para o confiar à colectividade, do mesmo modo é uma injustiça, um grave dano e perturbação da sociedade e da boa ordem social, passar para uma sociedade maior e mais elevada o que comunidades menores e inferiores podem realizar. O fim natural da sociedade e da sua acção é coadjuvar os seus membros, e não destruí-los nem absorvê-los». E desta definição retirou o mesmo Papa uma recomendação à superior autoridade pública, para que respeite o princípio de deixar ao cuidado preferencial das associações inferiores, na escala da vida civil e política, o que elas podem fazer, desse modo se realizando a si próprias e libertando-se assim a instância política mais elevada, o Estado, de questões que a absorveriam e a impediriam de desempenhar mais livre, enérgica e eficazmente «o que só a ela compete, porque só ela o pode fazer», por exemplo, regular superiormente, superintender, vigiar, estimular e reprimir, conforme os casos e as necessidades requeiram. E conclui a recomendação por estas palavras: «Persuadam-se todos os que governam que quanto mais perfeita ordem hierárquica reinar entre as várias associações, segundo este princípio da função subsidiária [sublinhado nosso], tanto maior serão a autoridade e a eficácia sociais, e tanto mais feliz e fecundo será o estado na nação».
Assim enunciado, não é difícil compreender o princípio da subsidiariedade social na sua fundamental razão de ser, isto é, como princípio regulador de todas as acções de cooperação, de solidariedade e de autoridade, tendo sempre em vista a finalidade primacial entre todas, que é sempre a promoção respeitosa do direito fundamental de auto-realização de cada pessoa humana. Que implica que ela possa não apenas usufruir dos seus direitos fundamentais, mas também cumprir os seus deveres fundamentais — garantida e apoiada, sim, mas sem ser desnecessariamente impedida nem substituída pelo Estado, nem numa coisa nem noutra.
10. Na Constituição Portuguesa, o princípio da subsidiariedade foi consagrado pela revisão de 1997. Mas, apesar desta consagração constitucional, ele continua quase clandestino na vida pública portuguesa. Ao contrário do que, por exemplo sucede em Itália. Neste país, que com a Alemanha tem merecido à escola jurídica e constitucional portuguesa uma grande e merecida consideração, teve lugar (em 2001) uma importante revisão constitucional, manifestamente já num quadro doutrinário mais avançado de Estado Constitucional. A nova redacção do Título V da Constituição, que é dedicado à organização política e administrativa («Le Regioni, le Province, i Comuni»), veio inovar substantivamente pela consagração do princípio da subsidiariedade. Merecem destaque duas novas orientações constitucionais.
Uma, a que a doutrina italiana chama de «subsidiariedade vertical», reconhece aos municípios uma competência de certo modo prioritária, precisamente em função do princípio da subsidiariedade. Diz assim: «As funções administrativas são atribuídas aos Municípios (Comuni) salvo quando, para lhe assegurar o exercício unitário, sejam conferidas a Províncias, Cidades metropolitanas, Regiões e Estado, na base dos princípios de subsidiariedade, diferenciação e adequação» (art. 118, § 1).
E outra, a que a doutrina chama de «subsidiariedade horizontal», nestes termos: «Estado, Regiões, Cidades metropolitanas, Províncias e Municípios favoreçam a iniciativa autónoma dos cidadãos, singulares e associados, para o desenvolvimento de actividades de interesse geral, na base do princípio da subsidiariedade» (art. 118º, § 4). Isto é: a começar pelo Estado e a acabar pelos municípios, todas as instituições políticas da República devem observar o princípio da subsidiariedade, dando prioridade à iniciativa dos cidadãos e dos corpos da Sociedade Civil.
11. Aqui fica um exemplo muito inspirador de incorporação, mais forte constitucional, do princípio da subsidiariedade, aliás em desenvolvimento da doutrina constitucional da União Europeia. Designadamente contida no artigo 5.º, n.º 3, do Tratado da União Europeia (TUE), que diz assim: «3. Em virtude do principio da subsidiariedade, nos domínios que não sejam da sua competência exclusiva, a União intervém apenas se e na medida em que os objectivos da acção considerada não possam ser suficientemente alcançados pelos Estados-Membros, tanto ao nível central como ao nível regional e local, podendo contudo, devido às dimensões ou aos efeitos da acção considerada, ser mais bem alcançados ao nível da União.» «Mutatis mutandis», o que vale no âmbito das relações entre a União e os Estados membros, vale nas relações políticas internas dos Estados membros, porque o princípio é universal, em função da dignidade da pessoa humana. E um Estado honesto não pode ser adepto deste princípio, que é universal, só quando «lucra» com ele.
Professor Catedrático Jubilado do ISCTE e da Universidade Católica Portuguesa.
‘Caderno de Apontamentos’ é uma coluna que discute temas relacionados com a Educação, através de um autor convidado.
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