Eu sei, eu vi, eu estive lá
LAURINDA ALVES 07.11.2017 OBSERVADOR
Não quero médicos que pensem que a minha vida já não vale a pena e se ofereçam para me matar, em vez de me encherem de confiança, esperança e cuidados. Arrepia-me a ideia do negócio à volta da morte.
Para o bem ou para o mal, nunca fui de grandes manifestações públicas. Não sou de ir para a rua celebrar vitórias em campeonatos nacionais e internacionais, mas também não sou de me juntar a grandes massas para distribuir panfletos, nem me é fácil gritar palavras de ordem e tenho pouco jeito para andar com cartazes ao alto. Houve alturas em que senti que era meu dever fazê-lo, e fi-lo, mas sempre com algum desconforto. Não me orgulho nada deste desconforto, note-se, apenas o reconheço por me conhecer o suficiente para saber que a minha inclinação natural é expressar-me por palavras escritas em jornais ou revistas, e ditas em fóruns, entrevistas, debates ou encontros onde posso olhar as pessoas nos olhos.
Felizmente não são todos como eu, porque senão estaríamos tramados. Que seria do mundo sem a coragem dos que saem à rua para gritar, para se indignar, para lutar, para interpelar, para empunhar cartazes e repetir palavras de ordem?
Posto este ponto prévio, que me coloca em lados de barricadas porventura menos panfletários, mas nem por isso menos eficazes, assumo que ultimamente fui a duas manifestações públicas por sentir que não podia deixar de estar presente. A primeira juntou milhares de pessoas em todo o país. Muitas delas no Terreiro do Paço, em Lisboa, num encontro marcado pelo silêncio de apoio às vítimas dos incêndios e seus familiares. Não havia megafones nem slogans ensaiados, não houve palavras gritadas nem bandeiras para além das da solidariedade que nos uniu e manteve juntos, até cumprirmos um minuto de silêncio em simultâneo com todos os portugueses que saíram à rua nas suas cidades e comunidades à mesma hora, pelas mesmas razões.
Nessa tarde sentimos o irreprimível impulso de nos juntarmos para que os que mais sofrem pelas mortes, pelas perdas de bens e por toda a devastação provocada pelos incêndios sentissem que não estão sozinhos na sua dor. Era mais isto que nos movia do que protestar contra quem quer que fosse, ainda que todos saibamos que qualquer multidão composta por cidadãos de diferentes gerações e com distintas opções tem sempre impacto político.
A segunda manifestação pública foi a Caminhada pela Vida, no sábado passado. Em Lisboa caminharam milhares de pessoas, mas também houve centenas e centenas a associarem-se no Porto e em Aveiro. Embora tenha estado activa em anteriores campanhas e seja radicalmente a favor da vida, especialmente nas fases mais vulneráveis (seja ainda em embrião ou no cúmulo de debilidades provocado por doença ou incapacidades), nunca tinha ido numa caminhada pela vida. Defendi sempre as minhas causas e os meus pontos de vista em palcos públicos destinados ao debate, mas também nos meios e lugares mais ou menos visíveis onde somos chamados a ser coerentes na acção e a assumir os nossos ideais. Desta vez senti necessidade de voltar a sair à rua para me juntar aos mais combativos que gritam e empunham cartazes.
Num tempo politicamente estranho em que se confundem prioridades e de tudo se faz uma causa fracturante, é importante unirmo-nos pela vida. Em particular pela vida dos que sofrem, independentemente do sofrimento ser provocado por doenças ou por catástrofes naturais e acidentais.
Caminhar pela vida é afirmar que a vida humana é o bem mais valioso de todos e, por isso mesmo, tem que ser defendido e protegido. Sabemos que em situações de maior aflição, o impulso natural do ser humano é cuidar e proteger o outro ser humano. A solidariedade, o espírito de entreajuda e o sentido de resgate revelam-se diariamente e são prática comum no quotidiano, sempre que nos deparamos com pessoas doentes ou frágeis, deprimidas ou desistentes, a quem tentamos dar apoio e devolver o sentido da vida, mas também em teatros de guerra e nos conflitos mais sangrentos. Os inimigos matam e morrem, mas nas linhas da frente de uns e outros há e haverá sempre exemplos de grande altruísmo.
Lemos notícias e livros, vemos filmes e documentários que narram o testemunho de heróis comuns que arriscaram ou perderam a própria vida para salvar outras vidas. Exemplos como estes interpelam e tocam em fibras sensíveis pois nunca saberemos como agiríamos em situações semelhantes. A única certeza que temos é a de que a morte é irreparável e, por isso mesmo, sabemos que instintivamente faríamos tudo o que estivesse ao nosso alcance para preservar a vida. A nossa e a dos outros.
Preservar a vida é um instinto de sobrevivência, mas também um desígnio e uma demanda interior do ser humano. Daí a estranheza que provoca a aparente facilidade com que se pretende legislar a eutanásia, sem antes tratar de aprovar leis que assegurem a todos os cidadãos, sem excepção, o acesso a cuidados paliativos. Começar pelo fim e pelo que é absolutamente irreversível nem sequer é começar uma casa pelo telhado, é tentar construir sem chão nem tecto.
Nenhum ser humano no seu estado natural é capaz de empurrar outro ser humano desesperado, quando o vê prestes a atirar-se de uma ponte. O instinto de sobrevivência e a demanda pela preservação da vida impedem-nos de o fazer e levam-nos a evitar que o pior aconteça. Numa situação destas todos teríamos o impulso de salvar, de resgatar, de ajudar a perceber como aquela vida ainda poderia voltar a ter sentido. Empurrar para o abismo de uma ponte ou para a guilhotina de uma linha do comboio alguém no auge do seu sofrimento e desespero não está no código genético de nenhum ser humano. É desumano.
Dizer a alguém que a sua vida não tem sentido e concordar que a única saída é a morte, oferecendo-se para colaborar com esta morte no extremo da sua fragilidade, é equivalente a empurrar para o abismo e desumaniza uma sociedade inteira. Legislar a e é ir contra toda uma cultura humanista que tantos séculos levou a cimentar, mas também é violar a Constituição e ofender todos os que lutaram e lutam para manter activa a Declaração Universal dos Direitos do Homem. Convocar profissionais de saúde a praticarem eutanásia vai contra todos os Códigos de Ética médica, incluindo a revisão actualizada do Juramento de Hipócrates na Assembleia Médica Mundial (Declaração de Genebra de Outubro de 2017).
Margarida Neto, médica especialista em temas de família e uma referência nacional em matéria de defesa da vida, esteve nesta mesma caminhada e levantou a voz para recordar factos e números que dão que pensar nesta fase em que tudo ainda é possível.
“Poucos países no mundo aprovaram a eutanásia ou o Suicídio Assistido. Dos cerca de 200 que existem, apenas 5 votaram a favor: a Holanda, a Bélgica, o Luxemburgo, a Suíça e o Canadá. Nos Estados Unidos apenas 4 estados (dos 50) aceitam a eutanásia. Em Inglaterra e França a eutanásia foi liminarmente rejeitada”. O enunciado dá que pensar.
Aquilo que me fez caminhar entre a multidão de seis mil pessoas que encheu ruas e avenidas no sábado foi a necessidade vital de juntar a minha voz às vozes dos que gritam e lutam, dos que combatem e não desistem de tentar esclarecer que ser morto não é um direito, assim como matar nunca será um dever. Muito menos um acto de compaixão.
“Sabemos pelos países que legalizaram a eutanásia – e os números estão nos relatórios! – que muitas vezes a eutanásia encobre situações existenciais como o receio de ser um fardo ou perder a autonomia” disse Margarida Neto. E pior, ‘resolve’ perversamente de uma vez por todas o cansaço da vida, o isolamento, a doença mental e a idade. O mais grave é que muitos casos de eutanásia não são pedidos pelo próprio e isso, sim, é verdadeiramente assustador.
“Na Holanda, fazem-se 5 mil eutanásias por ano, apesar da lei e das comissões reguladoras. Todos os anos tem aumentado. Sabemos que há eutanásias não pedidas pelo próprio, e que são até do desconhecimento da própria família. Sabemos que doenças como a depressão e a demência têm servido de justificação para a eutanásia. Na Bélgica há crianças a ser eutanasiadas. Esta é a realidade e chama-se rampa deslizante. Existem documentos e artigos científicos a comprovar tudo isto.”
Os números são desoladores e eloquentes de uma cultura de descarte. Não quero isso para mim nem para o meu país, muito menos para os meus familiares e amigos. Se tudo correr bem, havemos de envelhecer e ficar mais frágeis. Se tudo correr mesmo muito bem havemos de ter profissionais de saúde apostados em tratar ou acompanhar as nossas doenças, cuidando das nossas vidas. Não quero médicos que concordem que a minha vida já não vale a pena e se ofereçam para me matar, em vez de me encherem de confiança, esperança e cuidados. Arrepia-me a ideia do negócio à volta da morte e das clínicas que têm que cumprir um business plan, usando para isso estratégias de marketing e fidelização (!) que passam por encorajar famílias a livrarem-se do peso dos mais velhos, dos mais doentes e dos menos capazes.
Eutanasiar a pedido do próprio já é uma realidade dura e difícil – e todos compreendemos que haja quem peça a eutanásia, pois há sofrimentos indizíveis, mas uma coisa é pedir para morrer, e outra é servir a morte em vez de tentar encontrar estratégias para minimizar o sofrimento físico, moral e emocional, ajudando quem pede a eutanásia a valorizar a sua vida.
Fiz três anos de voluntariado de cabeceira numa Unidade de Cuidados Paliativos e não me canso de partilhar que conheci várias pessoas (de diferentes idades) que entraram a gritar desesperadas por eutanásia e deixaram de a pedir quando começaram a beneficiar desses mesmos cuidados paliativos. Algumas destas pessoas voltaram a viver uma vida satisfatória, viajaram e realizaram sonhos antes de morrerem e foi muito comovente, muito poderoso e extraordinariamente transformador assistir ao seu processo de aceitação da sua condição, bem como à forma como se pacificaram com o seu fim. Falo de pessoas autênticas que ficam para sempre como monumentos de coragem e de verdade, a quem presto a mais sincera homenagem por me terem permitido compreender o valor da vida no auge da doença e da incapacidade. É por estas pessoas, porque sei o que passaram, porque vi e porque também estive lá, à sua cabeceira, que nunca mais poderei deixar de sair à rua e gritar a favor dos cuidados paliativos, contra a eutanásia.
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