O Caminho da Vida
JOÃO CÉSAR DAS NEVES DN 04.11.2017
Todas as épocas e regiões registam atrocidades e horrores. Algumas, porém, ficam marcadas para sempre por barbaridades extremas. Guilhotina jacobina, holocausto nazi, ataque atómico ao Japão, massacres arménio e tutsi, entre tantos outros, definem indelevelmente a comunidade que os executou. Essas calamidades são praticadas, em geral, com excelentes motivos, buscando finalidades elevadas. Foi o sonho da sociedade perfeita que motivou o gulag soviético, "grande salto em frente" chinês ou reinado dos khmers vermelhos. A contradição entre dignidade de propósitos e terror das acções justifica-se pela armadilha ideológica, que facilmente justifica os meios sangrentos pelos fins sublimes.
A nossa sociedade, que se diz democrática e tolerante, passa hoje por algo semelhante. Comportamentos que todas as gerações anteriores abominaram e as próximas contemplarão com náusea são legitimados pela cegueira doutrinal mais opaca, que domina leis, discursos e jornais. No futuro será difícil compreender como uma cultura sofisticada e benévola conseguia participar, e até defender, tais perversidades.
Hoje, 4 de Novembro, em Aveiro, Lisboa e Porto, realizam-se Caminhadas pela Vida, manifestações públicas em defesa do direito mais básico e essencial, a protecção de seres humanos contra agressões fatais de outras pessoas. Ser necessário sair à rua para defender princípio tão decisivo e elementar chega para mostrar a gravidade da situação. Têm de existir factos terríveis para que cidadãos respeitáveis e cordatos sintam o impulso de levantar a voz para dizer algo que Constituição, leis e todo o Estado de direito deveriam garantir automaticamente. Mas não garantem. Essas pessoas não só tem boas razões para aquilo que acusam, mas sabem que a generalidade da sociedade está apática, senão abertamente cúmplice, perante as crueldades cometidas no aborto, na eutanásia, na procriação assistida e em tantos outros atentados à vida e à família.
A morte anual de dezenas de milhares de pessoas, totalmente inocentes e absolutamente indefesas, constitui uma chacina, não só inimaginável, mas que ultrapassa facilmente em dimensão e injustiça muitas das catástrofes que desonraram épocas antigas. E isso passa-se na serenidade esterilizada de hospitais, protegido pela lei e praticado por médicos que juraram defender vida e saúde.
Um aborto é sempre um acto objectivamente abominável, arrancando à força um feto do seio da mãe grávida. Qualquer pessoa equilibrada só pode sentir repulsa e aversão perante espectáculo tão degradante. Claro que o mesmo se poderia dizer de muitas intervenções cirúrgicas, mas essas justificam-se pelo bem do paciente. Aqui, porém, a repugnância corresponde à finalidade, que é simplesmente matar a criança antes de nascer. De qualquer ponto de vista, essa operação é repelente e detestável.
Como pode então uma sociedade civilizada tolerar tal procedimento e, mais ainda, promovê-lo e subsidiá-lo? A resposta é simples: conveniência. Aquele nascimento cria incómodo, aquela criança é indesejada. Trata-se precisamente do mesmo argumento que justificava os horrores antigos. Todos os que matam têm sempre interesses a proteger; aliás, normalmente mais ponderosos do que o incómodo de criar um filho. Os "motivos socioeconómicos" da eufemisticamente chamada "interrupção voluntária da gravidez" são menos compreensíveis do que os que justificaram as grandes mortandades históricas, a maior parte delas atingindo menos pessoas do que o flagelo actual.
Como é possível, no primeiro quartel do século XXI, que civilizações sábias e refinadas aceitem esta prática hedionda, e até a defendam como direito humano? A resposta é, mais uma vez, paralela aos argumentos usados nas antigas carnificinas: recusar estatuto humano a certas pessoas. Este é o raciocínio que suporta a escravatura, a limpeza étnica e práticas afins. Como o feto não é uma pessoa, pode matar-se, se der jeito. Aquele que, para os pais que o amam, é já o bebé querido em gestação, o mesmo que, logo depois do nascimento, terá todos os direitos, pode perante a lei ser reduzido à condição de quisto a remover como maligno. E o nosso tempo aceita isto, justifica-o, estimula-o como direito maternal.
O aborto é apenas o extremo do que se passa na morte de doentes e idosos, nos milhares de embriões congelados e tantos atentados à vida e ao casamento, resultado da mesma ideologia hedonista e arrogante. Aqueles que se opõem à matança são considerados bárbaros incivilizados; precisamente o que se dizia dos que defendiam os negros na América esclavagista. Por isso, as Caminhadas pela Vida parecem patéticas à comunicação social e cultura dominante. Mas essas manifestações dirigem-se menos aos concidadãos, embriagados na cega doutrina do género, do que às gerações futuras. Quando os nossos descendentes contemplarem horrorizados este tempo, é bom que saibam que já hoje havia quem se opunha, em nome da vida e da liberdade, a esta miséria.
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