O engenheiro florestal que conhece (mesmo) o fogo por dentro

EXPRESSO    01.11.2017
Tiago Oliveira é o especialista a quem António Costa confiou a missão de mudar o sistema
Domingo, 3 de agosto de 2003 ficará para sempre na memória de Tiago Martins Oliveira. Nesse dia, ele próprio sobreviveu às chamas. “Dois camaradas chilenos morreram, enquanto outros oito, entre os quais eu, escaparam da morte certa. Éramos e somos profissionais de prevenção e combate aos incêndios, mas seremos sempre sobreviventes”, fez questão de lembrar o homem que tem em mãos montar a nova Estrutura de Missão para a Gestão Integrada de Fogos Rurais, no dia em que tomou posse.
Nesse trágico verão, Tiago Oliveira tinha 34 anos e vestia a farda amarela e verde de sapador florestal da Afocelca (estrutura de proteção contra incêndios criada pela indústria da celulose). Acompanhava uma equipa de dez peritos chilenos que ajudava a apagar fogos numa propriedade na Chamusca quando foram apanhados numa “emboscada de fogo”. Cinco fogos juntaram-se num e as temperaturas galoparam de 40 para 80 graus. O fumo impediu o resgate da equipa por helicóptero e tiveram de “correr, correr muito”, relatou então ao Expresso.
O engenheiro florestal, agora com 48 anos, considera-se “um sobrevivente”, mas quem o conhece diz que ele é mais do que isso. “Desde aquele dia, Tiago pensa sobretudo em como Portugal vai sobreviver aos fogos e como pode ajudar o país a mudar o sistema”, conta João Pinho. O amigo desde os tempos de faculdade garante que “se o país quiser seguir o caminho que ele defende, encontrou o líder certo”.
Os dois assinaram este verão um artigo intitulado “Fahrenheit 451” (publicado na revista da Ordem dos Engenheiros) onde lembram que não querem ver o “conhecimento impresso queimado” como os mais de quatro milhões de hectares devastados pelo fogo no país desde os anos 80. Há décadas que se sucedem relatórios internacionais e nacionais de peritos e organizações a recomendar a Portugal um sistema profissional de prevenção e combate aos fogos, que vai colocar sob um comando único todas as competências relacionadas com incêndios florestais. É esse novo sistema que ele tem de montar até ao final de 2018.

SAIR DA “PRISÃO” DO COMBATE

Há muito que Tiago Oliveira defende a necessidade de se olhar para a floresta articulando prevenção e combate sob um comando único. Em entrevista ao Expresso, em julho, argumentava: “O comando tripartido não funciona e é um sistema de ‘passa culpas. Assim não vamos lá.” As tragédias de Pedrógão e de 15 de outubro e as recomendações feitas pela comissão técnica independente foram ao encontro do que ele e outros especialistas têm defendido em manifestos e conferências, aconselhando o Estado a inverter caminho. “O sistema está aprisionado à lógica do combate” e para sair desta “prisão”, “é preciso ver que a prevenção é o melhor caminho”. Caso contrário, alertava, “vai sempre escapar um fogo que vai queimar tudo de forma trágica”.
Quem o conhece — técnicos do sector florestal, académicos ou agentes da proteção civil — garante que Tiago Oliveira “é a pessoa certa” para a missão. “Tem experiência”, “ideias claras” e “é um homem dedicado à causa”, dizem a várias vozes.
“É uma pessoa com muita força de vontade e que não desiste”, sublinha Paulo Fernandes, professor da Universidade de Trás os Montes e Alto Douro e um dos membros do júri que em julho aprovaram com louvor a sua tese de doutoramento sobre a “Transição florestal e a governança de risco de incêndio em Portugal nos últimos 100 anos”. Fê-la para “aprender mais e desenvolver ideias”, ao mesmo tempo que trabalhava como responsável pela proteção florestal e gestão de risco de incêndio do grupo Navigator e como docente convidado no Instituto Superior de Agronomia.
A política também faz parte do seu currículo, sem cartão partidário. Foi adjunto do secretário de Estado das Florestas, João Soares, no Governo de Durão Barroso (PSD), e do ministro da Agricultura, Jaime Silva, no de José Sócrates (PS). Integrou a equipa que coordenou a proposta técnica do Plano Nacional de Defesa da Floresta Contra Incêndios, apresentada em 2005 e metida na gaveta em 2006, era António Costa ministro da Administração Interna.

“A POLÍTICA É A ARTE DO POSSÍVEL”

Há quem se surpreenda que o primeiro-ministro o tenha ido buscar para esta tarefa que ficará sob a sua tutela direta. “António Costa pode ter aprendido com o passado”, diz Paulo Fernandes. Ou ter “um instinto de sobrevivência muito apurado”, ironiza Henrique Pereira dos Santos, arquiteto paisagista. Já Pedro Bingre do Amaral sublinha que “o Tiago é um homem com a consciência de que a política é a arte do possível, e sabe dialogar”.
A política está-lhe no sangue. O pai, o historiador António César de Oliveira, foi militante do PCP, fundador do Movimento da Esquerda Socialista (MES), e autarca de Oliveira do Hospital, eleito pelo PS. Tiago tinha 27 anos, quando o pai morreu. Do pai dizem que “herdou uma personalidade muito vincada”, frisa o amigo João Pinho.
Já na faculdade se revelava “muito proativo”, tanto a nível académico, como em relação ao sector florestal, social ou desportivo. Esteve ligado à organização do Cordão Humano por Timor, participou no Camel Trophy e dinamizou o primeiro agrupamento de proprietários florestais da freguesia de Valoura, em Vila Pouca de Aguiar, onde a família tem uma quinta com vinha, carvalhos e castanheiros. O mês de setembro era sempre passado a vindimar ou de enxada na mão e botas na terra. Nos outros tempos de férias, aproveitava para viajar pelo mundo. Percorreu mais de 40 países, da Suécia à China, passando pela Mongólia, EUA ou Chile, explorando florestas, escalando montanhas ou dedicando-se a desportos aquáticos.
No currículo soma mais de 20 anos de experiência em atividades ligadas à gestão de risco do fogo a nível nacional e internacional, quer como perito em projetos do MIT (Fire-Engine) ou da Organização para a Alimentação e Agricultura (FAO), quer como técnico da Portucel/Navigator.
A sua ligação à indústria da celulose levou o Bloco de Esquerda e o partido Os Verdes a levantarem reservas sobre a escolha. “É absurdo!”, reage Pedro Bingre. “Nunca seria o homem de mão da Navigator”, defende, lembrando que “Tiago vai trabalhar na prevenção e combate a incêndios e não no ordenamento florestal”.
Uma das prioridades já anunciadas pelo novo chefe de missão é a reorganização dos bombeiros. O objetivo é profissionalizar os que se dedicam aos incêndios florestais, separando as outras vertentes da proteção civil, entregue a voluntários. “Esta clarificação e foco nos resultados exigirá o uso do conhecimento e dos recursos públicos de forma mais eficaz e eficiente”, afirmou Tiago Oliveira, em julho. Segundo ele é possível gerir a floresta “limpando o mato com máquinas, pessoas, fogo ou gado e assim dinamizar a economia da prevenção e poupar na do combate”. Afirmou-o há dois meses, longe de saber que lhe seria dada oportunidade de tentar concretizar as suas ideias.

VERSATILIDADE

Tiago Oliveira (em primeiro plano), em 2011, numa missão como sapador florestal. Mas é também um académico e um adepto dos desportos da natureza. No currículo encontram-se formações e participações nas coisas mais variadas, da condução todo-o-terreno, passando pela coordenação de combate a incêndios com meios aéreos, ao uso de técnicas de primeira intervenção ou à formação em gestão de stresse em situações de crise.
A par com as referências aos artigos científicos publicados ou aos manifestos assinados em defesa da floresta e do país, encontram-se outros saberes como o domínio de técnicas de alpinismo, escalada, orientação, canoagem, equitação, mergulho ou primeiros socorros.

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