Teologia da ternura e perguntas menos ternas

PAULO RANGEL   PÚBLICO   16.05.17

A profunda humanidade de Francisco em nada impede um discurso exigente, duro, radical.


1. Quem lê estas linhas sabe que, quiçá ainda mais além do que justificaria a minha condição de cristão de cultura católica, sou um confesso e entusiasta admirador do Papa Francisco. De há muito que aqui, num ou noutro artigo mais longo (com especial destaque para a crónica de 10 de Março de 2015) e em comentários na rubrica Sim/Não, dou sinais contínuos dessa enorme admiração. Sem nenhum menoscabo para os outros Papas que conheci — como abaixo bem se verá —, é o Papa com que mais me identifico. E esta visita a Fátima aumentou seguramente a minha identificação com o seu modo de afirmar a mensagem cristã e de conduzir e orientar a mole humana de fiéis que compõem a Igreja Católica. Ao mesmo tempo, e nada tendo que ver com o Papa Francisco, muito do ambiente que rodeou a visita suscita um conjunto de apreensões e perguntas. 


2. Comecemos pelo gesto e apelo que reforçou a minha já dificilmente reforçável identificação. Francisco é afectuoso e acolhedor; Francisco é um óbvio praticante da “teologia da ternura”. Digo “teologia da ternura” para usar um conceito a que recorreu na riquíssima e belíssima intervenção de sexta-feira à noite, decerto inspirado pelo ambiente mariano e maternal de Fátima. Francisco é terno e meigo no contacto humano. Muitos já estarão esquecidos, mas também em João XXIII, em João Paulo I e em João Paulo II encontramos este traço distintivo de enorme afeição e empatia humana, esta capacidade e vontade de acolher e abraçar antes de qualquer apelo religioso. E, no entanto, a profunda humanidade de Francisco em nada impede um discurso exigente, duro, radical.
Quando Francisco põe a questão do verdadeiro sentido do culto mariano, enunciando o dilema entre o culto da disponibilidade e da entrega da primeira cristã entre os cristãos e a devoção mais superficial ou até supersticiosa ou interessada, Francisco é duro, é exigente, é austero. O Papa não quer abolir a religiosidade popular, nem diminuí-la ou sequer apoucá-la, senão não canonizaria crianças analfabetas. Mas quer que ela seja vivida com um sentido profundamente cristão e acredita seriamente que nenhuma barreira cultural ou social impede, bem pelo contrário, essa vivência genuína e densa.A lição a tirar é, pois, a de que a ternura da proximidade humana e o aconchego do acolhimento do semelhante em nada modificam a radicalidade da mensagem evangélica e das suas exigências. E se isto é visível neste convite papal à clarificação do sentido do culto mariano, é igualmente manifesto no modo como defende a dignidade das pessoas (refugiados e marginalizados) ou a justiça do modelo económico-social (condenação do materialismo e capitalismo selvagem). Em todos estes campos, os braços estão abertos, a voz é meiga, mas a mensagem não é fácil nem facilitadora. Também aqui, tal como escrevi no dito artigo de 2015, o Papa procura imitar Jesus: manso de coração, cheio de compaixão, mas sem nunca iludir a exigência e a dificuldade de viver autenticamente essa mansidão e essa compaixão. 

3. Há depois perplexidades que o derrame avassalador do frenesim mediático necessariamente levanta. A primeira é a de que tudo começa com o Papa Francisco, como se ele tivesse ditado uma ruptura ou antes dele se vivesse nas trevas do obscurantismo. Felizmente muitos lembraram (e eu também, em 2015) que há enorme continuidade entre Bento XVI e Francisco. Desde logo, na dessacralização do papado. Bento XVI publicou obras como teólogo enquanto Papa em funções, distinguindo a sua pessoa do múnus papal, e renunciou em 2013, retirando parte da carga transcendental desse múnus. Já Francisco, em nítida continuidade, assumiu-se desde o início como Bispo de Roma e desprendeu-se de mais uns tantos sinais majestáticos que ainda rodeavam o papado.

4. Depois, é absolutamente bizarra a ideia de que, com Francisco, finalmente a Igreja Católica e o seu Papa se focam nos pobres e na condenação do capitalismo. Como pode criar-se esta impressão, quando a Rerum Novarum de Leão XIII vem do século XIX? E que dizer da constituição conciliar Gaudium et Spes e do seu destino universal de todos os bens? E da Populorum Progressio de Paulo VI ou da Laborem Exercens e da Centesimus Annus de João Paulo II? Acaso alguém se terá olvidado de que João Paulo II nunca deixou de condenar o capitalismo desenfreado ao lado do comunismo (apesar de, diz-se, ter sido instado por Reagan e Thatcher, sem sucesso, a não ser tão contundente com o capitalismo liberal)? Claro que cada Papa tem o seu carisma e sublinha, mais ou menos, certos aspectos do ensinamento cristão; mas o foco de Francisco na ecologia, sem ser novo, é claramente mais inovador do que o foco na pobreza.

5. Outra dimensão surpreendente é a de considerar que a Igreja inovou radicalmente ao escolher um Papa não europeu, apesar de Giorgio Bergoglio ser o mais italiano dos cardeais não europeus. Parece evidente que a escolha de um Papa do leste europeu em 1978 foi muito mais surpreendente e até arrojada do que a eleição de um Papa sul-americano em 2013. O que ambas as eleições demonstram, descontando a intervenção divina em que muitos não acreditarão, é que a Igreja Católica está muito mais atenta à actualidade do que correntemente se supõe por aí.

6. Finalmente, uma última palavra para dizer que em nada me chocou o acompanhamento que as autoridades portuguesas fizeram desta peregrinação papal. Não teria ficado mal ao Presidente da República ou ao primeiro-ministro terem sido um tanto mais parcimoniosos e menos omnipresentes. Mas a laicidade pública não implica hostilidade ou indiferença e, por isso, não entrevi aqui qualquer problema. Apenas me pergunto se, diante de uma visita que não era de Estado, a atitude complacente de tantos opinadores de serviço seria a mesma se o Presidente fosse Cavaco Silva e o primeiro-ministro fosse Passos Coelho.

SIM e NÃO
SIM. Salvador Sobral. A vitória na Eurovisão é a vitória de um caminho arriscado e não calculista. E também da diferença na música e, em especial, na interpretação. Uma belíssima surpresa.

NÃO. Ministra da Administração Interna. São deploráveis as declarações sobre as condições dadas aos agentes da GNR aquando da visita papal. Num contexto menos eufórico, teriam consequências. 

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