Humanidade: uma espécie em vias de extinção
FRANCISCO ALVIM OBSERVADOR 22.05.17
Aquilo que provoca o sofrimento deve ser tratado, e isso deve ser feito com todas as forças. Assistir na morte não confere dignidade a quem morre. A dignidade está em assistir o doente até morrer.
A partir do Parlamento querem impor-nos uma nova forma de entender a vida. Por essa razão foi lá que recentemente nos manifestámos para dizer STOP!… à eutanásia.
Apesar da fraca cobertura do evento, é curioso que apenas uns dias depois os grupos parlamentares do PS e BE se tenham insurgido contra as conferências que o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) vai promover sobre o tema e que começam esta semana, com o apoio do Presidente da República, que abre a primeira sessão.
Como noticiou o Expresso, os deputados entendem que o CNECV não tem por missão auscultar a sociedade civil, principalmente quando o Parlamento já está a debater o tema. Mas quem são os senhores deputados para decidir que conferências pode ou não o CNECV fazer? Eis a ditadura de pensamento único que urge denunciar. O debate esclarecido não pode ser impedido.
Foi precisamente isto que fomos, há dias, explicar à Assembleia, ao grupo parlamentar dos Verdes, em representação dos 15 mil subscritores da petição “Toda a Vida tem Dignidade”.
Este não é um tema em que uma pessoa pode dizer que não tem opinião. É importante debatê-lo seriamente. E com seriedade é preciso dizer: o sofrimento não é brincadeira. Pelo contrário, diria que sofrer é o reverso da medalha de existir.
Falar do sofrimento do outro não é fácil. Infelizmente já passei por várias experiências de sofrimento e vivi, na primeira pessoa, e com a minha família, situações limite de doença. Essa experiência serve-me para afirmar o seguinte: quem é contra a eutanásia não é a favor do sofrimento. É preciso desconstruir esta ideia.
O sofrimento faz parte da condição humana. Sofre-se fisicamente como se está cansado, com sono ou com fome. E sofre-se psicologicamente como se está satisfeito, feliz, zangado ou triste. Não se é só meio homem, nem apenas para o que é bom. Todos estes fenómenos são naturais.
Do mesmo modo, a falta de convivência com a adversidade não a apaga quando ela surge. Se ignorarmos as dificuldades, elas não desaparecem. Ao invés, elas perduram, aumentam. Com o sofrimento é igual, seja ele físico ou psíquico. Se aquilo que o provoca não se trata, ele intensifica-se. Se não se alivia, ele dói, massacra. O mito que é preciso desmontar é o de que para acabar com o sofrimento a melhor (ou a única) solução é morrer.
A solução deve ser a oposta: aquilo que provoca o sofrimento deve ser tratado, e isso deve ser feito com todas as forças, até ao limite do que a ciência permitir. Assistir na morte não confere dignidade a quem morre. A dignidade está em assistir o doente até morrer.
Pensar assim não é justificar o encarniçamento terapêutico, forçando o doente a tratamentos desnecessários sem melhoria à vista. E também não significa impor um modelo de heroicidade. Pensar assim significa tão-somente isto: ser(-se) humano.
A chave está na “revolução da ternura e do carinho” de que falava o Papa Francisco em Fátima. Crentes ou não, a preocupação com os mais frágeis deve ser o centro da nossa actuação. E isso não pode ser sinónimo de abandono.
O Estado e todos nós devemos ajudar quem sofre. Aos doentes terminais deve ser dada especial atenção, mas o investimento não pode ser só nos cuidados paliativos (que são fundamentais). Os que perdem a razão de existir devem ser ajudados a reencontrar um sentido para a vida. Devem formar-se (mais) psicólogos, médicos, auxiliares que sejam orientados (querendo, claro) para a prestação destes cuidados. Devem fomentar-se iniciativas nas escolas, nas universidades, nas casas, nos empregos, nos partidos, nos hospitais, nas instituições de solidariedade social, de sensibilização para o problema. Deve criar-se uma forte consciência social de humanidade.
Como é que se faz isso com ideologias perniciosas, como a liberdade da mulher para decidir o que fazer com o seu corpo (entendendo por “corpo” a vida de um filho) ou a identidade de género, e não se faz o mesmo com uma questão tão básica? Porventura alguém prefere o egoísmo ao altruísmo?
O que não se deve fazer é escolher a solução mais fácil e barata. É desprezar. É dizer “tu não fazes falta”, “tu não vales nada”. É, perante desespero de um pedido de eutanásia, responder “OK, é para já”. Não se trata de respeitar a autonomia individual. Trata-se de lavar as mãos, como fez Pilatos, de uma decisão que também é nossa.
A vontade do doente não é completamente livre, está condicionada pela circunstância concreta de sofrimento da pessoa. Se alguém partir a mão, a reacção natural é querer acabar com a dor. Mas se a pessoa pedir para amputar a mão, estranhamos. Isso não é solução. Alivia-se a dor, trata-se, opera-se. Aqui passa-se o mesmo. A solução não pode ser a morte. Principalmente numa época em que a ciência está tão avançada.
Já todos ouvimos histórias de suicídio. O que dizemos de quem se suicida? Temos pena. Choramos. Coitado, não estava bem. E o que dizemos de uma sociedade que quer (ter o direito a) morrer? Que é moderna. Que é livre. Que está viva. Quanta ironia. Está sim moribunda.
O mais grave é que a Comissão Nacional do PS aprovou uma moção onde defende a despenalização da eutanásia, abrindo caminho para se legislar nesse sentido. E o senhor António Costa votou favoravelmente. E ninguém se insurge? Ninguém encosta o senhor primeiro-ministro às cordas? Talvez já não cheguemos a tempo. A senhora vice-primeira ministra e as gémeas secretárias de Estado já trataram de o fazer. E com muita eficácia.
Será o princípio da extinção de uma espécie? Talvez, mas cá estaremos para lutar por ela. Até ao último suspiro.
Advogado
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