O Mistério da Natividade - peça de teatro de Jean Paul Sartre
Há um ano, o Povo publicou um post sobre Jean Paul Sartre e o Natal, revelando uma faceta quase desconhecida da sua obra, a peça de teatro Barioná, um Mistério de Natal.
O grupo “Teatro do Ourives” leva à cena em Lisboa, esta magnífica peça: (horários e local aqui)
A minha primeira experiência teatral foi particularmente afortunada. Enquanto estive preso na Alemanha em 1940, escrevi, pus em cena e interpretei uma obra de Natal (…) naquela ocasião, ao dirigir-me aos meus companheiros por cima das luzes das gambiarras e falando-lhes desde a sua condição de prisioneiros, vi-os de repente tão realmente silenciosos e atentos que compreendi o que o teatro tinha de ser: um grande fenómeno colectivo e religioso.
Jean-Paul Sartre
Barioná, é a primeira peça de teatro de Sartre. Durante muito tempo não se encontrou o texto. Durante muito tempo, Sartre proibiu a sua representação.
Este Mistério de Natal escrito e levado ao palco no Stalag 12D, em Tréveris, na Alemanha - onde o autor esteve preso - foi presenciado nos dias 24, 25 e 26 de Dezembro de 1940 por cerca de dois mil prisioneiros de cada vez.
Em apenas seis semanas, não só escreveu a obra, como ensaiou um dos personagens - o Rei Mago Baltazar - dirigiu os actores e supervisionou o cenário e os figurinos. Esta representação teve como origem, o desejo e a inesperada autorização de poder celebrar no campo de prisioneiros de guerra, a Missa do Galo. Esta notícia e a relação d mútuo respeito e diálogo profundo entre Sartre e um grupo de sacerdotes católicos, levaram a que ele tomasse a iniciativa de propor a junção do sagrado e do profano: Porque não ressuscitamos a tradição dos Mistérios que antes se celebravam e nos quais todos podem participar de alguma maneira?
Para Sartre, Barioná representou – de acordo com Bernard - Henry Lévy – a verdadeira viragem na vida e na obra (…) é desta experiência do Stalag e da elaboração da peça nesse local, que data o nascimento de um segundo Sartre, efectivamente messiânico, optimista, engagé num sentido novo do termo e que volta subitamente as costas à bela metafísica pessimista que era como um salvo-conduto, uma vacina, contra os desvarios políticos.
Na verdade, encontramos nesta obra uma faceta menos conhecida de Sartre, mas sempre presente subterraneamente, Escreve-se para os que nos são próximos ou para Deus, uma herança discreta que lhe vem dos avós e continuada pelos pais através de uma mistura católica e protestante, que acaba por desabrochar nesta peça de teatro, serenamente inquietante e inesperada, e que é sem dúvida, um dos mais belos Mistérios da Natividade:
Este Deus é o meu filho. Esta carne divina é a minha carne. Está feita de mim. Tem os meus olhos, e a forma da sua boca é a da minha. Parece-se a mim. É Deus e parece-se a mim.
E nenhuma mulher, jamais, desfrutou assim do seu Deus, só para ela. Um Deus muito pequenino a quem se pode estreitar nos braços e cobrir de beijos. Um Deus quentinho que sorri e que respira, um Deus que se pode tocar; e que vive.
Neste momento presente da nossa história, não antes, não depois, mas dois mil e dez anos, com Cristo, continuamos a testemunhar com ardor e assombro, que “O Espírito sopra onde quer” (Jo 3, 8) e Barioná de Jean-Paul Sartre, concebido para celebrar a união mais ampla possível entre cristãos e não crentes é certamente um belíssimo e comovente convite à Esperança e à descoberta fulgurante da liberdade.
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