Natal na Luz

1. Frei João P. de passo estugado, naquela noite de 24 de Dezembro, sob uma chuva torrencial batida por forte ventania, fazia por chegar a horas ao “Despertar do Menino”. É tradição, na Ordem Franciscana, antes da Missa do Galo, o Guardião com uma imagem do Menino Jesus, acompanhado de dois irmãos com velas, ir pelos corredores do convento cantando Christus natus est nobis! Venite adoremus! (Cristo nasceu por (para) nós! Vinde adoremos!). À medida que vai batendo à porta da cela de cada Irmão, estes abrem-na, beijam o Menino e incorporam-se, com velas, formando procissão até à Igreja.
Ao subir os degraus de acesso ao portão de ferro forjado deparou com um vulto de costas, encharcado, tremente de frio, de cabeça erguida, olhando para o alto. Frei João, barbudo, encapuzado no seu gore-tex negro, para assinalar a sua presença tossicou. O vulto virou-se e ao deparar com aquela carantonha barbuda ao fundo de um grande capuz negro expediu um grito. Era uma jovem, de rosto pálido, olheiras carregadas, visivelmente grávida. Frei João, reagindo prontamente, disse-lhe:
- Santo Deus! Não se assuste… Jesus! Que faz aqui assim desabrigada e ainda para mais nesse estado!? Entre, entre depressa, que ainda apanha uma pneumonia. Pois que faz aqui!? Oh! Meu Deus, pobre pequena!
A moça olhava-o pasmada, de olhos arregalados, de rosto inerte, emudecida, enquanto Frei João P., depois da passado o portão, abriu rapidamente a porta de entrada, puxando delicadamente a jovem para dentro.
- Entre, entre. Não faça cerimónia. Venha por aqui, para uma sala aquecida. Depressa. Sente-se, sente-se que eu já venho; vou buscar umas toalhas para se enxugar. Nessa cadeira não; sente-se antes aqui para estar perto do aquecedor. Isso! Isso! Espere um nadinha que não demorarei.
Pouco depois, estava de volta com um toalhão, uma camisa, umas calças, largas como a sua grande barriga, e uma camisola grossa. Pôs tudo em cima da mesa central e adiantou:
- Queira fazer o favor de se enxugar e mudar de roupa, enquanto lhe preparo um chá quente.
- Mas, mas onde estou? O senhor quem é? Perguntou timidamente a moça.
- Não receie que está na casa de Deus. Este é o convento da Luz, de Nossa Senhora da Luz, e eu sou o Frei João, um Padre franciscano. Nada tem a temer. Mude-se depressa, não vá apanhar alguma doença ruim…
Frei João, ao regressar, bateu à porta perguntando se estava já mudada, se podia entrar. Como a resposta fosse afirmativa, avançou e colocou o tabuleiro com o chá quente e uns biscoitos na mesa.
Reparou então, pela dilatação da barriga, que a gravidez da moça se achava em estado muito adiantado. Sorrindo disse:
- Muitos parabéns! Vejo que tem um filho e que dentro em pouco lhe verá a carinha, o terá nos seus braços e o amamentará a seus peitos. Grande alegria! Melhor, enorme alegria!
O olhar dela, até então mortiço, inexpressivo, ganhou um súbito brilho de alegria, uma vivacidade jubilosa, acompanhado de um grande sorriso de contentamento. Mas logo se lhe franziu o sobrolho numa tristeza.
- Que foi? Perguntou Frei João. Que fazia ali numa noite como esta?
- Olhava para o azulejo…
- Azulejo? Que azulejo?
- Aquele redondo que encima a frontaria do convento. Fixava-me na Virgem Maria com o Menino ao colo. E do fundo do coração pedia que me ajudasse.
- Ah! Sim, a Imaculada Conceição. A Nossa Senhora, com o Seu Filho Jesus, que esmaga o Maligno.
- Padre, continuou ela, estou só. E a solidão pesa-me muito nesta noite de Natal. Por isso vagueava pelas ruas numa grande angústia e melancolia até que deparei com esta fachada iluminada e vi a Nossa Senhora. Deixei-me ficar, absorta, esquecida do tempo, até que o Padre apareceu.
- Pois, não tens tu família? Onde está o pai da criança que trazes em ti? És tão nova, hás-de ter teus pais vivos…
Então, soluçando, debulhada em lágrimas contou a sua história.
Que como já tinha emprego saíra de casa para ir viver com o namorado. Apesar das “precauções” que lhe tinham ensinado na escola acabara por engravidar. O pai da criança não a aceitava de modo nenhum e pressionava-a para abortar. Ela depois de um primeiro susto ficara maravilhada por trazer aquela vida dentro de si e começara a sentir-se, literalmente, mãe. Enfrentou o amante, discutiram, foi chantageada, não se deixou subjugar. O rapaz abandonou-a com desprezo e violentas imprecações. Lembrou-se então que era filha, que sua mãe deveria lembrar-se da alegria de a ter trazido em si durante nove meses. Foi a casa dos pais contar-lhes o sucedido. Pedir conforto, compreensão e companhia. A mãe disse-lhe, sem papas na língua, que o seu namorado é que tinha razão e que a única coisa certa a fazer era “botar o bebé para fora”. O pai, esse, ficara indiferente dizendo-lhe somente, entre dois arrotos, enquanto bebia cerveja e olhava pasmado a televisão, que ela já tinha idade para saber o que fazer e que fosse qual fosse a decisão que ela tomasse para ele estava bem. Mas que não trouxesse a criança lá para casa, pois chegara a reforma e agora queria era sossego e descanso. A mãe, implacável, ofereceu-se, “pelo muito que lhe queria”, a pagar-lhe o aborto. Revoltada, voltou para o seu apartamento e desde então tem vivido sozinha com o filho que traz debaixo do coração. Com ele se tem entretido em longas conversas, repetindo-lhe o seu amor.
- Padre! - exclamou ela de supetão -, será que me podia confessar? Tive uma educação tão religiosa num colégio de freiras durante oito anos. Depois, aos poucos, fui-me afastando – deixei de ir à Missa, abandonei Deus…
- Claro que sim! Espera só um pedaço enquanto levo estas coisas e me vou paramentar para celebrarmos o sacramento da reconciliação.
Dentro em pouco reentrava Frei João envergando a alva e a estola branca. Distraído, a pensar na Missa do Galo, esqueceu-se de que deveria celebrar o sacramento da penitência com a estola roxa.
Sentou-se, fez o sinal da Cruz sobre a moça enquanto dizia:
- O Senhor esteja nos teus lábios e sobretudo no íntimo do teu coração para celebrarmos com muito fruto este sacramento de conversão.
O pranto da penitente era tão grande, o seu arrependimento tão manifesto, o amor a Cristo tão verdadeiro e comovente que Frei João só pensava na pecadora arrependida do Evangelho que lavava os pés de Jesus com as suas lágrimas e os enxugava com os seus cabelos.
Depois de lhe sussurrar palavras de consolação e encorajamento, deu-lhe como penitência participar na Missa do Galo, em seguida absolveu-a, e terminou pedindo-lhe que repetisse as seguintes palavras de um dos salmos. “Dai graças ao Senhor porque Ele é bom, porque é eterna a Sua misericórdia”.
Mal ela terminou de dizer estas palavras, exclamou:
- Ai Padre! Que se me rebentaram as águas.
Frei João habituado que estava à meditação da Sagrada Escritura pensou de imediato, como num automatismo, no Espírito Santo tantas vezes significado na Bíblia com a água viva; só num instante a seguir quando ela lhe diz que está com contracções é que se apercebeu realmente do que se passava.
- Não se assuste. Tenha calma. Vamos chamar o INEM ou os bombeiros.
Tirou o telemóvel do bolso, mas verificou que estava sem bateria.
- Ligue do meu, disse ela vasculhando com as mãos na roupa encharcada de que se tinha despojado.
Mas o seu também não funcionava porque a água o tinha estragado.
- Ai Padre! Que estou cheia de contracções.
- Não se assuste, que a central telefónica do convento é já aqui ao lado e eu faço a chamada. Correu Frei João para a portaria, mas o gabinete do pbx estava fechado. Ela entretanto chamava por ele. Frei João começou de dar patadas na porta procurando arromba-la mas os seus 57 anos tinham-lhe tirado vigor e nada conseguiu. Lembrou-se então do Frei José C., enfermeiro da comunidade, muito experimentado e caridoso. Mas o convento era enorme, gigantesco e os clamores dela, cada vez mais aflitivos. Ainda correu cerca de 40 metros até ao fim do primeiro corredor e reparou que já se ouvia, ao longe, o cântico Christus natus est nobis! Venite adoremus! Um grito estridente fê-lo correr novamente para a sala onde ela, a Maria da Conceição, deitada no chão, de costas para baixo, com as calças desapertadas, coberta de camarinhas de suor, em contorções convulsas exclamou:
- Não me deixe! Ajude-me que ele quer sair! Ele vai nascer!
Frei João, numa aflição em que nunca se tinha visto nem esperava sequer que algum dia lhe viesse a acontecer, desparamentou-se rapidamente, tirou-lhe as calças, colocou por debaixo das suas coxas a alva, para que o bebé não tocasse no tapete, enquanto rezava a Nossa Senhora do Ó, do Bom Sucesso e do Bom Parto que acudisse. Como por milagre a criança, uma rapaz, saiu com facilidade e brevidade. Frei João tentou limpá-lo com a alva, deu-lhe uma palmada que o pôs a chorar. Levantou-se e correu como um louco até ao claustro inferior onde se pôs a gritar para a procissão que percorria o claustro superior:
- Nasceu! Nasceu! Depressa, ajudem! Frei José venha depressa que nasceu!
Como ninguém estava ao facto do que se passava, coisa que esqueceu a Frei João, todos cuidaram não só que fosse mais uma das suas singularidades, que lhe eram habituais, mas um verdadeiro despropósito. No entanto, como não se calasse e os brados fossem em crescendo o Guardião pediu ao Frei José que fosse acalmar o Frei João e lhe desse o tratamento necessário. Mal o Frei José desceu, o Frei João correu para ele pegou-lhe pelo pulso e arrastou-o até à sala de visitas na portaria. Ao deparar com tamanho espectáculo o Frei José exclamou:
- Virgem Santíssima! O que é isto Padre?
Mas a pergunta era retórica porque experiente como era começou logo a tratar do necessário. Entretanto Frei João foi-lhe contando em traços gerais o que tinha sucedido e como não conseguira nem chamar o INEM, nem a ele, Frei José. Este pegou então do seu telemóvel e fez a chamada. Correu em seguida à enfermaria buscando o que era necessário para tratar prontamente da mãe e do filho.
Entretanto chegou a hora da Missa. Maria da Conceição fez menção de participar. O Frei José opunha-se veementemente em nome da saúde. Frei João segredou-lhe que estava evidentemente dispensada da penitência que lhe dera. Mas ela inamovível, com uma determinação e vigor invulgares teimou que havia de participar, e com o seu filho. Frei José, verificando que a única coisa limpa e seca ali era a estola branca de Frei João, pegou nela e enfaixou o pequeno para o resguardar do frio. Frei João, foi então em demanda do Padre Guardião, Frei Domingos C. M., para explicar o sucedido. Encontrou-o na sacristia envergando a casula para a celebração da Santa Missa. Explicou-lhe brevemente o que se passava. Frei Domingos e o Prior da Paróquia, Frei José António C. L., quiseram abençoar a mãe e o filho, antes da Missa começar. Ora eles iam, precisamente nesse momento, passando pelo corredor que levava à Igreja fronteiro à porta da sacristia. Frei Domingos chamou-os e abençoou-os, e o mesmo fizeram todos os sacerdotes presentes. Nesse momento a mãe com ar inspirado pediu o baptismo para seu filho. Todos ficaram hesitantes. Ela insistiu, suplicou, implorou. Chegava nesse momento o Frei Victor M. L. que ia presidir à Eucaristia como Superior maior. Sabedor do que se passava logo acedeu com alegria e entusiasmo em realizar o baptismo. O Pároco, Frei José António, logo assentiu. O Frei Albertino R., director do coro, que tinha nesse momento ido à sacristia para acertar as últimas coisas com o Presidente da celebração, logo entoou, no que foi imediatamente secundado pelos restantes Irmãos, o cântico Vou cantar um hino à vida, dom gratuito do Senhor, pela graça recebida bendirei o Seu amor.
O Frei José lembrou então que o INEM devia estar a chegar. O Guardião encarregou-o por isso de tratar com eles o melhor modo de atender a mãe e o bebé, logo que chegassem.
A meio da homilia chegaram os bombeiros. Maria da Conceição recusou-se a deixar a celebração. Frei José conseguiu dos bombeiros que, caso não tivessem nenhuma urgência, aguardassem o final da Missa. Estes consentiram, e um deles pediu se podia também assistir.
O Frei Victor perguntou se alguém aceitava ser padrinho daquela criança a que a mãe dera o nome de Francisco. Ofereceram-se dois casais, bem conhecidos pela sua virtude, e a mãe agradeceu comovida. Entretanto os sacerdotes que concelebravam, bem como os fiéis leigos que se encontravam nos cadeirais não puderam deixar de reparar no ar tão compenetrado, como que extático, daquele jovem bombeiro que seguia tudo com visível interesse e comoção.
A solenidade dos cânticos, a beleza dos paramentos, a preciosidade dos vasos sagrados, a luminosidade do templo, a participação orante de todos, num só coração e numa só alma, davam a impressão de que o Céu tinha descido à Terra. A oferenda do Sacrifício incruento tornava presente o Cristo Glorioso e Ressuscitado, escondido na aparência do pão e do vinho.
Antes da bênção final, Frei Domingos, Guardião do Convento da Luz, explicou que o Menino ia ser retirado do presépio para a seguir à bênção todos o poderem beijar. Foi então que o acólito mais novo, demasiado despachado, se dirigiu para o mesmo. Depois de pegar no Menino, ao girar, tropeçou no tapete do altar arrastando consigo Nossa Senhora e S. José. Como não se aguentasse e caísse quebrou-se a imagem do Menino bem como a de Sua Mãe e a de Seu pai adoptivo.
Um grande “Oh!” de consternação profunda ecoou por toda a Igreja. O petiz, vermelho como uma beterraba, não sabia onde se meter. Mas Frei Victor, que nunca se atrapalhava com nada e tinha sempre uma grande capacidade de improviso logo disse:
- Nosso Senhor na Sua Providência quis que neste Natal tivéssemos um presépio ao vivo. Por isso a Maria da Conceição fará de Nossa Senhora e seu filho Francisco de Menino Jesus. E para S. José… para S. José… Oh, amigo bombeiro como se chama o Sr.?
- Zé, respondeu ele num fio de voz envergonhada.
- Pois então vem mesmo a calhar, e fará de S. José. Ficam os dois ao lado do Francisco, quer dizer, do Menino Jesus, enquanto quem quiser vem beijar os seus pezinhos.
O Zé, encaminhado por Frei João, lá foi para onde lhe indicaram com os olhos marejados de lágrimas. À medida que a procissão dos fiéis procedia em homenagem ao Menino, S. José chorava cada vez mais. O seu pranto era de tal ordem que todo ele tremia e soluçava, a ponto de não se ter de pé e se colocar de cócoras. Muitos diziam, mais tarde, que nunca tinham visto alguém chorar assim. Maria da Conceição depois do arrebatamento agradecido de todas aquelas alegrias inesperadas e totalmente imerecidas não conseguiu deixar de reparar no bombeiro que assim se derramava. Apoderou-se dela uma grande compaixão e uma simpatia profunda. Olhou então para Frei João, com ar interrogativo e suplicativo. Tendo este pressentido o que ela queria abeirou-se de “S. José” e levantou-o. Este abraçou-se em Frei João, como uma lapa a um rochedo. Passados uns minutos, o sacerdote conseguiu colocar-lhe o braço por cima dos ombros e encaminhá-lo para uma sala contígua à sacristia. Aí ficou a saber do sofrimento daquele moço. Tinha vivido junto com uma moça que engravidara, e apesar de todos os seus esforços e de toda o auxílio quer da parte da sua família quer da dela não conseguiu evitar que ela abortasse o seu filho. Aquela dor muito dorida nunca mais o largou, era uma chaga aberta cheia de sal.
Uma hora depois, saiu o Zé com um rosto luminoso de alegria. O seu companheiro impaciente rosnou-lhe alguns impropérios. Ele sorriu e abraçou-o com veemência. E seguiram finalmente para o Hospital com a Maria da Conceição e o Francisco.
2. - Ai como o Frei João está envelhecido! Como ele se atrapalha a concelebrar…
- Psiu Maria! Lembra-te que estamos na Igreja e ele ainda te pode ouvir.
- Ouve lá agora, há-de estar mouco de todo, pobrezinho. Ainda me lembra quando ele nos casou e baptizou os nossos filhos…
- Quem nos diria Maria, retorquiu o Zé, há 28 anos, que viríamos a assistir à Missa celebrada pelo Francisco, coadjuvado pelo Frei João, na mesma Igreja e na mesma noite de Natal em que ele foi baptizado. Os desígnios de Deus são realmente insondáveis. Na verdade, Ele, como diz S. Paulo, concorre em tudo para o bem daqueles que O amam.
- Sabes, Zé, continuou a Maria, cada vez compreendo melhor aquelas palavras da Escritura: onde abundou o pecado, superabundou a Misericórdia.
Nuno Serras Pereira
21. 12. 2010

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