Em busca da autenticidade perdida

Público, 2010-12-11 António Bagão Félix
O coração da vida social e política deixou de ser a coerência entre o ser, o pensar, o dizer e, sobretudo, o fazer

O tempo passa e um pouco de tudo aquilo que nós chamávamos falsidade se transforma em verdade

Marcel Proust


Quando um político diz, em pose de vencedor, que a verdadeira sondagem é a eleição a que concorre, deve perceber-se que já a perdeu em definitivo.

Quando um governante afirma, em pose de autoridade, que o FMI não entra no seu país, deve entender-se que está prestes a ser recebido.

Quando um chefe de um governo declara, em pose de juramento, que na sua mente não há qualquer remodelação, aproxima-se o dia de se saber quais os ministros e secretários de Estado que vão sair e entrar.

Quando um director de um clube anuncia, em pose de estádio, que o treinador não está a prazo, deve-se antever que está prestes a ser despedido.

Quando um banqueiro afirma, em pose segura, que a banca está imune às crises, deve perceber-se que um ""qualquer" BCE" está a financiá-la.

Quando um governante enfatiza mecanicamente a vitalidade da sociedade civil nas áreas social e educativa, em pose de profissão de fé, deve desconfiar-se e esperar pela asfixia de iniciativas fora da esfera pública.

Quando um dirigente de um clube formula votos de êxitos internacionais aos seus directos adversários domésticos, em pose de solidariedade, deve adivinhar-se que, no seu íntimo, deseja exactamente o contrário.

Quando um governante se regozija, em pose de Estado, com menos 0,1 pontos percentuais na taxa de desemprego ou mais 0,1 pontos percentuais no PIB, deve ler-se que a situação social e económica vai piorar.

Quando uma central sindical diz, em pose aclamatória, que uma greve foi um êxito, deve calcular-se que atingiu apenas uma minoria da actividade laboral.

Quando um ministro da Economia realça o papel determinante das PME, em pose de colóquio, deve perceber-se que estava a pensar nas grandes empresas do regime.

Quando um ministro das Obras Públicas diz que põe de parte uma grande obra, em pose técnica, deve esperar-se por saber quando a começa e quanto vai custar a mais.

Quando um ministro da Saúde anuncia, em pose adventista, que os medicamentos vão ficar mais baratos, deve ler-se que os utentes vão ter menos comparticipação.

Quando um ministro da Educação se regozija com uma qualquer estatística, em pose de Magalhães, quer dizer que o facilitismo escolar aumentou.

Quando certos empresários reivindicam menos Estado, em pose de auto-suficiência, estão a candidatar-se a mais algum apoio desse mesmo Estado.

Quando um dos responsáveis pelo OE diz que a despesa pública está dentro dos padrões de segurança, em pose de relatório, quer significar que está fora de controlo.

Quando certos gestores anunciam, com pompa e circunstância, uma "reestruturação, reengenharia" ou um qualquer outro substantivo com o prefixo "re", em pose tecnocrática, estão a equacionar um despedimento colectivo.

Quando um general em tempo de guerra lamenta danos colaterais, em pose justificativa, quer dizer que houve vítimas civis inocentes e indefesas.

Quando economistas afirmam que uma certa variável já foi descontada pelos agentes económicos, em pose sofisticada, querem dizer que previram mal e tarde.

Quando alguém começa uma frase com a expressão "é evidente" ou "é indiscutível", em pose infalível, deve entender-se que não é evidente e é discutível.

Quando uma revista cor-de-rosa glorifica algumas famosas e indestrutíveis uniões, em pose deleitosa, está a anunciar umas pré-desuniões.

Quando recebemos em catadupa cartões, SMS e mails de Boas Festas, em jeito de atacado, deve recordar-se o que vale um singelo "bom-dia" olhos nos olhos.

Quando nas cimeiras da NATO se fala do Afeganistão, em pose de união, deve interpretar-se nas entrelinhas que se trata do Paquistão.

Quando se ouvirem expressões como"implementar", "geometria variável", "problemática", "integracional", "multifocal" ou "societal" e outras que tais, em pose doutrinal, quer dizer que nada se quer dizer.

Quando se invoca por regra a excepção, em pose evitável, toma-se a regra, por excepção.

Quando alguns abusam do uso da expressão "palavra de honra", em pose certificatória, deve imaginar-se que a honra está pelas ruas da amargura.

Eis alguns exemplos da (falta de) autenticidade que urbe et orbi grassa. Há quem lhe chame "linguagem politicamente correcta". Na sua formulação superlativa, creio. Nesta altura lembro-me do que um dia disse, com o seu corrosivo sarcasmo, Oscar Wilde: "Se disseres a verdade, vais ver que mais tarde ou mais cedo vais ser descoberto."

O coração da vida social e política deixou de ser a coerência entre o ser, o pensar, o dizer e, sobretudo, o fazer e passou a ser a "ditadura do parecer" e a retórica da omissão ou da ocultação. Economista, ex-ministro das Finanças



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