O hábito de pensar
DN 2010.05.03
JOÃO CÉSAR DAS NEVES
Há cada vez mais pessoas deprimidas devido a jornais e telejornais. Não é a sua vida que as entristece, mas as notícias. Muita gente sofre a crise na pele, mas muito mais sofre pelo que ouve ser a crise, que não sente. Isto é insólito, mas o pior é a explicação, que invoca pormenores laterais. A maioria diz-se infeliz pela situação do País, ou atribui a tristeza à má qualidade de políticos e jornalistas. Isso não anda bem, mas o verdadeiro problema não está nem numa coisa nem noutra, mas no grande mal-entendido dominante na suposta sociedade da informação.
A comunicação social apresenta-se como meio informativo e assim parece considerada pelo público. Mas de facto poucos a usam para se informarem. O que realmente compram é pensamento enlatado, opinião pronta-a-vestir. Nos jornais e telejornais obtêm-se, não dados para alimentar a reflexão, mas reflexão já cozinhada que se engole acriticamente. Para satisfazer essa procura, grande parte dos media, mantendo a ficção de meios informativos, transmitem ideias pré-fabricadas.
O mal não é as notícias serem enviesadas, pois é impossível relatar de forma neutra. Nem é haver excesso de comentário opinativo, em geral alheio ao fenómeno. O conhecimento requentado que gera a depressão é, não uma visão particular, mas a entidade vaga conhecida como "opinião pública", que pensa por todos. A opinião pública não corresponde a qualquer dos comentadores ou debates, mas ao que "toda a gente sabe", a referência central do momento. O que "toda a gente sabe" ninguém sabe de onde vem, mas costuma ser uma visão mesquinha, redutora, boçal e cínica sobre a realidade, normalmente simplista, enviesada e mal informada, frequentemente contraditória.
Um bom exemplo está na infelicidade nacional causada pela crise financeira. Portugal tem evidentes problemas económicos, que suscitam atenção e merecem alarme. Mas o que conta na vida não é o que nos acontece, mas o que fazemos com o que nos acontece. Perante uma dificuldade vê-se a fibra da pessoa. Ou do povo. Nada na nossa situação económica justifica uma depressão psicológica geral. Certas circunstâncias pessoais merecem desânimo devido à impotência e desamparo perante o brutal choque concreto. Mas o desalento geral face ao risco abstracto é cobarde, egoísta, oportunista e mercenário. A atitude tíbia e resmungona da opinião pública deve-se, não à crise, mas à opinião pública.
Aliás os lamentos nascem da mesma atitude que gerou a crise. Só temos défice orçamental e dívida externa pelo excesso de regalias face ao que o País produz e pode pagar. Só temos desalento e irritação por causa da ilusão de um direito a um mundo sem crises, que gera indignação perante qualquer dificuldade. Mesmo na recessão, vivemos muito melhor que os nossos pais viviam. No entanto, embalados em pseudodireitos adquiridos, balanceamos entre euforia e depressão.
Se o País vive um momento de aperto, é preciso diagnosticar a situação, confrontar a causa, procurar a saída. Cada um, ao seu nível, tem de suportar o sofrimento e enfrentar a dificuldade. Foi assim que ultrapassámos problemas muito maiores. Assim venceremos este. Pôr-se a lamentar bloqueios, bramar contra culpados remotos, insultar o País ou cair na autocomiseração não se deve à recessão. Vem da falta de carácter.
Este nosso problema é uma manifestação de um diagnóstico já antigo e muito mais vasto que a dívida lusitana. "A grande tradição intelectual que chegou até nós, desde Pitágoras e Platão, nunca se interrompeu ou perdeu com bagatelas como o saque de Roma, o triunfo de Átila ou todas as invasões bárbaras da idade das trevas. Apenas se perdeu após a introdução da imprensa, o descobrimento da América, a fundação da Royal Society e todo o progresso do Renascimento e do mundo moderno. Foi aí, se o foi em qualquer parte, que se perdeu ou se quebrou o longo fio, fino e delicado, que vinha desde a antiguidade remota. O fio dessa rara mania dos homens - o hábito de pensar" (G. K. Chesterton, 1933, St. Thomas Aquinas, cap. III).
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