O demónio de Evagrius

Público, 20100524 José Pacheco Pereira



Tenho tido uma aguda experiência da devastação que a acédia pode fazer na comissão de inquérito ao chamado "caso TVI"



Acédia. A palavra persegue-me como as palavras perseguem alguém, de forma viral. Já a usei algumas vezes para descrever o mesmo "estado" em que hoje, mais do que nunca, Portugal e os portugueses se encontram. "Acédia" existe no dicionário do Houaiss como "enfraquecimento da vontade", "inércia", "tibieza", "preguiça", como significados primeiros e depois como "melancolia profunda", "abulia espiritual", como significados secundários. A palavra tem uma longa história no pensamento ocidental, incorporando conceitos correntes na "filosofia de vida" greco-latina na tradição cristã, ganhando aí um sentido pejorativo que materializava o pecado mortal da "preguiça".

A acédia era também um demónio. Nenhuma história da "acédia" pode existir sem a descrição clássica desse demónio particular feita por Evagrius de Pontus. Este considerou-o o "mais preocupante de todos", o comandante dos oito géneros de demónios que assaltavam o monge solitário. Na Summa Theologica de Tomás de Aquino "acédia" aparece como o contrário da "alegria espiritual" e, depois dele, ininterruptamente, o conceito, nas suas relações com o "ennui" francês e com o "spleen" (foi para fugir à "cisma" que o nosso Henrique de Souselas foge para casa da tia Doroteia no reino da Morgadinha dos Canaviais), sempre interessou aos "modernos". Thomas Merton escreveu sobre a acédia, Milosz, num ensaio sobre os "sete pecados mortais", também.

Pois vivemos dias de intensa acédia, de "enfraquecimento da vontade", "inércia", "tibieza", "preguiça", de indiferença moral a tudo. E, pior ainda, atacamos com veemência todos os que denunciam a acédia, como se a mera presença de alguém que não aceita a resignação abúlica fosse um maior mal, um irritante impossível de aceitar, uma fonte de mal-estar que precisa de ser extirpado para se poder voltar à normalidade da "abulia espiritual". Tenho tido nos últimos tempos uma aguda experiência da devastação que a acédia pode fazer na mal amada comissão de inquérito ao chamado "caso TVI", à possibilidade de ter havido uma manobra governamental em 2009, em período eleitoral, para controlar órgãos de comunicação social. Escrevo aqui possibilidade, ou hipótese, de forma académica, porque é sabido que poucas ou nenhumas dúvidas tenho sobre o que se passou, mas isso não é essencial para o que quero dizer. Chega-me a mera possibilidade, para já haver um problema.

Tenho tido aí toda a experiência canónica da falsidade, desde a mentira pura e dura até à omissão da verdade e a sugestão de falsidade. Como é óbvio, abundam mais as duas últimas do que a primeira, porque homens prevenidos têm sempre lapsos de memória nos momentos cruciais, acompanhados noutros momentos de uma memória vivíssima, às vezes exercendo-se sobre acontecimentos do mesmo dia, da mesma hora. Devem ser os misteriosos caminhos da memória. Mas nessa experiência de falsidade há também a soberba que vem ou da impunidade, ou do desprezo pelos interlocutores que são tratados como capazes de engolir as mais implausíveis histórias da Carochinha, apenas porque se está a falar de actos sem rastro material, sem actas, sem correspondência, sem testemunho que não seja o dos cúmplices na falsidade. É penoso, muito penoso, mas é um verdadeiro curso intensivo sobre alguma natureza humana, vinda de pessoas que são poderosas e estão habituadas a mandar sem quaisquer limites. Nem da decência, nem da lei.

É uma tarefa muito solitária e sem recompensa. Para a comunicação social é uma espécie de diversão tratada numa sucessão de comentários snobes e derrogatórios por causa dos "incidentes", que é matéria que mais lhes satisfaz relatar. Apetece pegar nos jornalistas pelas orelhas e dizer-lhes: imaginem que no vosso jornal não têm uma redacção, mas cinco, competindo entre si. Que cada redacção tem uma visão diferente do jornal que quer fazer. Que em cada redacção há jornalistas bons e maus, mais competentes ou mais incompetentes, mais ambiciosos ou mais passivos, uns sérios e honestos e outros comprados por interesses, que à porta da redacção e dentro dela há várias agências de comunicação cada uma tentando "colocar" uma notícia para satisfazer um cliente. Que numa reunião geral todos os dias toda a gente se junta para discutir, propor, criticar, de modo a condicionar o jornal que sai no dia seguinte. Não deve ser bonito de se ver, deve ter incidentes, interpelações, discussões que, de repente, sem ninguém o desejar, ou mesmo desejando-o, se afastam do "essencial" e vão para pormenores, intrigas, coisas acessórias, secundárias. E que tudo isto é presenciado por uma outra redacção, noutro jornal, única, cheia de jornalistas que se consideram superiores à turba das cinco redacções, com amigos nessas redacções, simpatias e antipatias, e imaginem que toda aquela confusão tem que ser relatada. Podem ter a certeza que o relato destila superioridade, nojo pela balbúrdia, comiseração, exploração dos incidentes. Podem ter a certeza que, se houver argumentos um pouco mais complicados, matérias que têm que ser seguidas com cuidado, confrontando documentos e versões, coisas que dêem trabalho, anti-soundbites, análises ou apreciações que não vão na onda da maioria, eles não terão nenhum lugar, se houver uma frase divertida ou uma gaffe azarada. É a vida. Não faria mal a todos esses superiores seres experimentar a sua própria medicina.

Mas, se neste incidentalismo há muita "preguiça", há muita mais pura e dura acédia. Também a indignação moral se tornou "incidental", e onde é mais necessária existe apenas "abulia espiritual". Vamos admitir, apenas admitir, que em 2009 ocorreu total ou parcialmente aquilo que a comissão investiga e que, verdadeiro exemplo de acédia, a maioria dos nefelibatas afirma pelos bares ter a certeza que existiu. Justifica-se tanta indiferença? Pode-se dizer que "todos os governos fazem o mesmo", para neste caso nada fazer? Pode-se encolher os ombros e dizer, como se fosse a coisa mais natural do mundo, "toda a gente sabe que ele mentiu", e depois? Não mentem todos? Pode-se dizer que foi uma tentativa que não passou de uma tentativa que acabou por não se concretizar (não é bem verdade...)? Pode-se dizer que isso são águas passadas e que hoje temos tantas coisa importantes para tratar, que isso é uma distração ou uma vendetta? Pode-se de facto dizer muitas coisas destas, mas esta enorme indiferença de jornalistas e, mais do que de jornalistas, de muita da nossa elite, é o terreno privilegiado da acédia, que depois se transmite como uma doença para todo o lado. É como a corrupção, um mal cuja aceitação social tem mecanismos muito semelhantes.

O demónio de Evagrius adormecia os monges, a acédia adormece o carácter cívico da sociedade sem o qual a democracia não sobrevive. Cria poltrões habilidosos em esconder que estão a dormir em vez de ler, porque dá muito trabalho. Cria um país ao qual se pode fazer tudo, desde que não se seja descoberto. Ou melhor, desde que não se seja descoberto de modo muito descarado, porque, se for disfarçado, passa. Passa tudo, passa mesmo tudo.

Historiador

Comentários

Mensagens populares deste blogue

OS JOVENS DE HOJE segundo Sócrates

Hino da Padroeira

O passeio de Santo António