A natural convivência entre a Ciência e a Fé

A natural convivência entre a Ciência e a Fé

Público, quarta-feira, 4 de Março de 2009

José Manuel Fernandes

Não é por acaso que o Vaticano de Bento XVI decidiu celebrar, com um congresso científico, os 150 anos de A Origem das Espécies

Cresci num ambiente especial - um ambiente onde a conciliação entre as verdades da Ciência e a crença no Deus dos católicos era absolutamente natural. Muito novo, ainda adolescente, descobri Teilhard de Chardin, cujos livros enchiam prateleiras na biblioteca do meu pai. O padre jesuíta que dedicara a sua vida à investigação como biólogo e paleontólogo passara por dias difíceis no tempo de Pio XII, começara a ser reabilitado no quadro do Vaticano II, cuja doutrina então iluminava católicos empenhados, como os meus pais. E a obra de Teilhard inspirava muito o meu pai, biólogo e crente. Tal como, percebi muito mais tarde, influenciou o jovem teólogo alemão que hoje é Papa. Numa obra de 1982, escreveria que "o sinal enviado por Teilhard (...) incluía o movimento histórico da Cristandade no contexto do processo cósmico da evolução de Alfa até Ómega". Mais: "A máxima de Teilhard - 'o Cristianismo significa mais progresso, melhor tecnologia' - encorajou os bispos conciliares (...) a sentirem que era mais fácil transmitir" a ideia de que "a evolução pode ser entendida como um progresso técnico e científico no qual a Matéria e o Espírito, o indivíduo e a sociedade, formam um conjunto global, um mundo divino".
Não me surpreende por isso que - apesar de, entretanto, eu próprio ter perdido a Fé - o Vaticano tenha convocado um congresso científico e teológico para celebrar os 150 anos da edição de um dos livros mais explosivos de todos os tempos, A Origem das Espécies, de Charles Darwin. E que não tenha convidado para estarem presentes nenhum apóstolo quer do criacionismo, quer do inteligent design, duas correntes que procuram, à força, conciliar as palavras do primeiro livro da Bíblia, o Génesis, com tudo o que a investigação científica nos tem revelado sobre a evolução das espécies.
Se, como defendem biólogos como Richard Dawkins, no best-seller A Desilusão de Deus, ninguém pode demonstrar a existência de Deus, nem sentem que ele faça falta, também é verdade o que próprio admite, como sucedeu numa entrevista ao PÚBLICO: a existência de uma relação entre religiões e civilizações permite perceber que há dimensões na Fé que ultrapassam o domínio da prova científica. De resto, dificilmente Dawkins poderia defender outra coisa, pois se há teoria que o tempo tem ajudado a moldar e sobre cujos mecanismos concretos ainda há muito a descobrir, essa teoria é a teoria da evolução das espécies. O problema não está, nunca esteve pelo menos para os cientistas, na existência da evolução, mas na determinação dos seus mecanismos concretos. O próprio Dawkins, por exemplo, mesmo sendo um darwinista assumido, manteve polémicas acesas com outro biólogo famoso, Stephen Jay Gould, a propósito da sua defesa da sociobiologia e do conceito do "gene egoísta" por contraponto à tese do "equilíbrio pontuado" de Gould.
Porquê? Porque ao contrário de outras teorias científicas, cuja prova pode ser feita repetindo uma experiência num laboratório, não é possível repetir o processo evolutivo que, por exemplo, permitiu que de uma determinada linhagem de dinossauros derivassem todas as diferentes espécies de aves que conhecemos.

Para muitos, recordar hoje o trabalho de Teilhard de Chardin - imerecidamente esquecido - fará pouco sentido quando quer a ciência, quer a teologia, prosseguiram caminhos que não os por ele sintetizados em obras como The Phenomenon of Man, publicado em 1940. Contudo, para entendermos a importância que o Vaticano está a dar às comemorações dos 150 anos de A Origem das Espécies é fundamental não esquecer que Bento XVI tem colocado entre as prioridades do seu papado a reconquista das elites intelectuais do Ocidente, provando-lhes que Fé e Razão não são inimigas, antes andaram de mão em mão. Não deseja, por exemplo, que Galileu seja visto apenas como um cientista proscrito, que agora, séculos depois, a Igreja reabilitou, antes como um cientista que, apesar de perseguido pela Inquisição, nunca deixou de ser um homem de Fé.
O congresso sobre Darwin deve, por isso, ser olhado à luz do que Bento XVI tinha escrito para ler na Universidade de Roma a 18 de Janeiro de 2008 antes de esta lhe fechar as portas. Ou seja, que o Papa ir à Universidade não para "impor de modo autoritário aos outros a Fé, a qual pode ser dada somente em liberdade", antes para "manter desperta a sensibilidade pela verdade; convidar sempre de novo a Razão a pôr-se à procura da Verdade, do Bem, de Deus e, neste caminho, estimulá-la a entrever as luzes úteis que foram surgindo ao longo da história da Fé cristã."
Tudo isto porque Ratzinger sempre procurou demonstrar que Fé e Razão não só não são incompatíveis, como podem iluminar-se uma à outra. Para isso não é preciso distorcer a Ciência, antes recordar que o conhecimento humano tem limites e que a crença absoluta na Razão, e esse seu derivado que é o positivismo, constituíram nos dois últimos séculos perigos maiores para a liberdade dos homens do que os "processos de argumentação sensíveis à verdade", como escreveu Habermas e Bento XVI recordou nessa altura.
Quem estudou Biologia e conviveu jovem com a obra Teilhard de Chardin sente que este, se ainda fosse vivo, ocuparia sempre um lugar de honra no congresso que o Vaticano agora organizou.



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