AS METAMORFOSES DE SÓCRATES
Diário de Notícias, 20090305
Maria José Nogueira Pinto
Jurista
Mais do que o ruído de um congresso, o que se diz e o que não se diz, quem diz e como diz, é útil lembrar estes quatro anos do consulado de José Sócrates. Útil e interessante, se virmos bem, pois aqui não houve ascenção e queda, mas uma forma subtil de luta pela sobrevivência, com a perda de domínio do criador sobre a sua própria criação e a superveniência dos defeitos como manifestação das originais virtudes, agora enlouquecidas, como diria Chestterton. Porque, há que reconhecê-lo, Sócrates é um verdadeiro personagem!
Na primeira fase, o primeiro-ministro surge como um chefe enérgico, determinado no desígnio de nos libertar de um conformismo tacanho, de uma crónica falta de ambição, de nos modernizar, a todos e cada um de nós. Afinal, somos um país da Zona Euro, um membro de pleno direito desse exclusivo clube que é a União Europeia e temos de nos comportar como tal, deixando cair de vez os atavismos do Estado Novo e as teias de aranha de um serôdio período revolucionário. A civilização, em suma!
Era simpático este primeiro Sócrates, trabalhador incansável, corajoso, rápido na decisão, usando a autoridade com singular incorrecção política, parecendo saber o que queria e por onde ia. Foi o tempo de um plano reformista, ambicioso e necessário. Mas depressa se viu que o homem não tinha painel de bordo, algo gravíssimo quando se arranca em todas as frentes com medidas que abanam, perturbam e criam resistências; quando se opta por um modelo de governo com um único rosto e uma única voz; quando se tem a tendência para atribuir atrasos ou percalços aos defeitos nacionais e nunca a erros tácticos; quando se deixa que o voluntarismo cresça em excesso e se transforme em precipitação. Da primeira fase ficaram algumas vitórias importantes, mas também as sequelas de um abanão sem sequência nas instituições e nas pessoas, muitas pontas soltas e a ideia nostálgica de como poderia ter sido e não foi: na Justiça, na Saúde, na Administração Pública, na Educação.
A segunda fase é, para mim, a mais misteriosa. O que levou Sócrates a remodelar o Governo com o único intuito de substituir Correia de Campos tirando-o do sector onde a reforma se lançava com maior probabilidade de êxito, por um mero defeito de comunicação? Como não percebeu a carga simbólica que este gesto iria revestir, num momento de acesa oposição às medidas do ministro? É a partir deste momento que Sócrates começa a perder a mão. As reformas são postas em banho-maria, a rua transforma-se no espaço de confronto político por excelência e o Governo perde grande parte da capacidade negocial. O que podia ser uma mera suposição fica confirmado com a megamanifestação dos professores e, sobretudo, com o gravíssimo incidente da ocupação de eixos rodoviários estratégicos pelos camionistas. Durante dias, o País viu um Sócrates que não conhecia: atarantado, perdido, inseguro, incapaz de accionar os mecanismos do próprio Estado; e, como sucede a quem perde a autoridade, o primeiro-ministro socorreu-se do autoritarismo.
A terceira fase é marcada pela emergência de uma crise económica global com contornos desconhecidos e uma evolução imprevisível. Ironicamente, a crise podia ter sido o novo fôlego de Sócrates se no primeiro debate parlamentar sobre esta questão tivesse apelado seriamente à coesão nacional e social. Mas optou por passar um atestado de menoridade a toda a oposição e enveredou pelo perigoso caminho da ficção: o Portugal do 2,2%, do aumento dos postos de trabalho, sem recessão à vista. Levou um cabaz de medidas anticrise para todos os gostos, embrulhadas num marketing agressivo e ruidoso. A oficialização da situação do BPN e do BPP fê-lo cair na tentação de um intervencionismo demagógico que gerou uma bola de neve perigosa, em vez de se limitar a salvaguardar a posição dos depositantes.
Daí para a frente é a tentação do autoritarismo, da ficção, da soberba e da vitimização que ameaçam esgotar o discurso socrático. E foi apenas isto que o congresso veio confirmar.
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