O regresso da austeridade quase sem disfarces
HELENA GARRIDO OBSERVADOR 20.04.17
“Logo se vê e acredita no que digo, não olhes para as estatísticas nem ligues às previsões”: estas as regras dos tempos que correram. O Governo agora começa a assumir a austeridade que sempre aplicou.
A política orçamental do Governo de António Costa foi, e promete ser, mais austeritária do que a concretizada pelo último ano de Governo de Pedro Passos Coelho. As perspectivas desenhadas no Programa de Estabilidade e Crescimento 2017-2021 dizem-nos exactamente isso: a página da designada austeridade não foi nem será virada. Como não podia ser, se o PS continuasse a ser aquilo que sempre foi, um partido que defende a integração de Portugal no euro e o respeito pelos compromissos da República Portuguesa em relação aos tratados que assinou e à dívida que contraiu.
O mais extraordinário dos tempos que vivemos em Portugal é a brutal diferença entre aquela que é a mensagem política e aquilo que de facto o Governo faz. É o ditado popular “faz o que eu digo, não faças o que eu faço” adaptado numa fórmula do género “acredita no que eu digo, sem olhar para as estatísticas, nem para o dinheiro que te entra de facto no bolso e muito menos para o teu poder de compra”.
Portugal já tinha sido um caso de estudo pela resistência que os cidadãos revelaram perante a dose de austeridade a que foram submetidos especialmente em 2012. Volta agora a ser um caso de estudo, para economistas e políticos, que queiram investigar como se aplica uma política de austeridade financeira, com o apoio da esquerda tradicional e moderna, e convencendo a população em geral que a sua vida está e vai ficar muito melhor do que de facto está. É de se lhe tirar o chapéu.
O grande erro cometido por todos quantos há um ano se preocuparam com o futuro do país, no quadro do euro, foi acreditar no que ouviam em vez de esperarem pelos actos antes de se pronunciarem. Os actos revelaram uma profunda contradição com as palavras. Depois de ter devolvido os salários à função pública e algumas pensões, o Governo fez uso de tudo o que tinha à mão, e não era visível de imediato, para reduzir o défice público. Foi tudo de facto histórico. O défice mais baixo da democracia – agora sim com a revisão feita pelo INE – e um dos saldos primários mais elevados do euro são devidamente acompanhados por cativações de despesa historicamente elevados, cortes recorde no investimento público e o já tradicional perdão fiscal.
Claro que a recuperação da economia e especialmente o aumento do emprego ajudaram. Mas até isso pode ter surpreendido o próprio Governo – nunca o saberemos. É apenas uma hipótese a colocar face ao resultado de 2% obtido no défice — bastava ter chegado aos 2,3% para se considerar um bom resultado, mesmo do ponto de vista da prova da sustentabilidade da dívida (prova e não realidade). Olhando para trás, percebe-se que o Governo pode ter sobre-reagido e até desperdiçado um das armas que pode precisar mais tarde, a do perdão fiscal.
Quando se olha para o que se passou nas contas públicas em 2016 e aquilo que o Governo promete fazer este ano e nos próximos, através do Programa de Estabilidade e Crescimento 2017-2021 (PEC17-21), percebemos que António Costa persegue o mesmo objectivo do seu antecessor Pedro Passos Coelho: controlar o “monstro” financeiro em que se transformaram as administrações públicas e especialmente o Estado central. E percebe-se melhor agora do que há um ano porque, finalmente, António Costa pode começar a mostrar o seu jogo, condicionados que estão os partidos de esquerda que o apoiam.
É de facto uma pena não se conseguir saber exactamente qual seria a realidade alternativa. Mas podemos fazer um exercício apenas económico-financeiro do que teria sido a continuidade de Pedro Passos Coelho na governação. (Apenas no domínio da economia e das finanças, porque a dinâmica política teria sido completamente diferente, nomeadamente na vida do PS que estava sob séria ameaça se não tivesse subido ao poder).
Comecemos pelo mais fácil que é a diferença entre o que se prevê e aquilo que foi a troika. A diferença mais significativa em relação aos anos da troika está na dose. O medicamento para a grave doença das finanças públicas tem a mesma substância activa: apertar o cinto de quem trabalha para o Estado e de todos os que pagam impostos. As doses da medicação são agora obviamente mais baixas, porque não estamos à beira da bancarrota e sem acesso a financiamento. Agora a austeridade pode aproveitar a recuperação já obtida com a terapia de choque do passado e a retoma da economia ditada em grande parte pelo turismo. Além disso, e não menos importante, criou-se para o “doente” um ambiente de descontracção, garantido pelo discurso do Governo de fim da austeridade e pela aliança com o PCP – o dono das manifestações de rua – e com o Bloco – que que se pode dizer, simplificadamente, que influencia mais o espaço da opinião publicada.
O que poderia ser diferente sem nunca termos a certeza que o seria? O ano de 2016 poderia ter sido menos turbulento, menos volátil, com um horizonte mais claro, aquele que só agora se está a conseguir ter. Ou seja, a margem de manobra política que António Costa ganhou em 2016 teve como preço a incerteza gerada pelo discurso agressivo contra a Europa e a dita austeridade e pelas medidas de “reversão” adoptadas nos primeiros meses de governação. Como é que esse preço se consubstanciou na economia? Não sabemos. Resta-nos admitir a hipótese de que o investimento seria mais alto – com elevada probabilidade. Recorde-se que a reposição de salários da função pública prometida por Passos Coelho era mais lenta, o que significa que poderia ter gasto mais em investimento público. De alguma forma, António Costa trocou investimento público pela reposição de salários.
Além disso, podemos admitir que as taxas de juro da dívida pública (aqui avaliadas pela média mensal da taxa de rendibilidade a 10 anos) estariam mais baixas e a avaliação do risco do país poderia já ter subido. No caso do ‘rating’ é aliás interessante verificar que só agora, há uma semana, é que começam a surgir análises sobre a possibilidade de o risco de Portugal melhorar a curto prazo. Foi o caso do Commerzbank – a admitir que a DBRS pode melhorar o ‘rating’ de Portugal – ou da Standard & Poor’s a sistematizar as condições em que a sua classificação pode subir: se a economia recuperar e o crédito malparado baixar. Parece óbvio ma saté há bem pouco tempo o problema não era colocado desta forma. Pelo contrário, o que se discutia era o risco de baixar o ‘rating’ e não as condições para o subir.
Em termos gerais, neste exercício de realidade alternativa, é possível admitir que o crescimento da economia seria mais elevado por via da confiança de quem investe já que a confiança de quem consome – para a qual se dirigiu o actual Governo – teve um efeito mas limitado que pode também ser explicado pela falta de confiança do sector privado.
Mas ponto a que chegamos hoje permite-nos respirar de alívio porque as piores perspectivas não se confirmaram. O Governo não fez o que disse que ia fazer e deu-nos uma austeridade disfarçada, com menos investimento e mais impostos indirectos, daquela que só conseguimos perceber passado algum tempo, animados (ou preocupados) que estávamos com o que António Costa e Mário Centeno nos diziam. E podemos ainda dar um segundo suspiro de alívio quando lemos o Programa de Estabilidade. Estão lá os objectivos de honrar os compromissos financeiros e reduzir a dimensão do Estado. Só não sabemos como é que o Governo o vai fazer. Mas a austeridade que já existia é agora assumida, com menos disfarces, menos mascarada.
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