Explicação de Direito a Maria Filomena Mónica

AUTOR: MAFALDA MIRANDA BARBOSA  OBSERVADOR  19.04.17
O problema da Maria Filomena Mónica não é a ignorância acerca de aspetos da doutrina católica, mas a absoluta incapacidade para captar as nuances categoriais ao nível jurídico.
O artigo que Maria Filomena Mónica escreveu em resposta ao Padre Gonçalo Portocarrero, a propósito de um texto por este publicado, no qual o autor tecia uma série de considerações acerca do matrimónio e da diferença entre pôr termo a um casamento ou pedir a declaração de nulidade do mesmo, merece alguma reflexão da nossa parte.
Ora vejamos. A socióloga começa por, em comentário à ideia de que a doutrina católica sobre o matrimónio é complexa, dizer que “esta conceção aristocrática é obsoleta, dado que a Igreja inclui, além do Papa, dos cardeais e dos sacerdotes, os fiéis”. Pois claro que a Igreja é composta por todos nós. Mas em que medida é que isso diminui a complexidade da questão? Porventura é por a Igreja ser composta por todos os fiéis que a análise da problemática matrimonial tem de ser despida de considerações teológicas e jurídicas?
Parece-me, aliás, que o problema da Maria Filomena Mónica não é a ignorância acerca de aspetos da doutrina católica, mas a absoluta incapacidade para captar as nuances categoriais ao nível jurídico. Na verdade, qualquer aluno do segundo ano de uma licenciatura em Direito percebe a diferença entre a anulabilidade e a nulidade e entre a invalidade e a resolução de um negócio. Pois bem, Maria Filomena Mónica, é sobretudo disso que se fala, também, a este nível! E, portanto, não tem razão quando imputa ao Vaticano a responsabilidade pela sua incompreensão. Podê-la-ia superar lendo um pouco – leituras simples, refira-se – antes de extrair conclusões precipitadas. O Vaticano não é responsável quanto ao ponto. Ponto.
Como também não é pela sua incapacidade para perceber aspetos teológicos. Se é certo que os sacerdotes sabem mais do que eu, não é menos seguro que ninguém me impede de aceder ao conhecimento pelo facto de ser mulher: alguém devia, em rigor, avisar Maria Filomena Mónica de que há teólogas e que os livros de teologia estão disponíveis para compra ou consulta em bibliotecas. Assim haja vontade e boa-fé. Nem é menos certo que há determinados aspetos da doutrina católica aos quais podemos aceder abrindo-nos à ação do Espírito Santo em nós.
Mas voltemos ao que interessa: ditam as regras que quando se quer contraditar uma posição, para mais sustentada em argumentos racionais, se deve cumprir um ónus de contra-argumentação. Maria Filomena Mónica prefere desferir um ataque ad hominem e insistir que a diferença entre a nulidade e a anulabilidade é uma bizantinice. Curiosamente, a nossa legislação civil (respeite ou não ao matrimónio) está repleta de bizantinices. Se eu lhe tentasse explicar que, para além destas duas hipóteses, um negócio ainda pode ser inexistente e ineficaz, talvez a incompreensão aumentasse. Há vícios que podem determinar que se anule um negócio; há vícios mais graves que geram a nulidade do negócio.
Numa tentativa de redução da complexidade – e portanto correndo o risco de imprecisões que, noutros contextos, seriam inaceitáveis – podemos dizer que se A e B simulam celebrar um contrato de arrendamento, este contrato é nulo, o que significa que ab initio não produziu efeitos (embora, em matéria civil, possa ainda produzir alguns efeitos, razão pela qual se autonomiza uma outra categoria, mais grave, que é a inexistência). Se A e B celebrarem aquele mesmo contrato de arrendamento por A ter uma errada representação da realidade, considera-se que o negócio é anulável, sanção menos grave, que apenas se justifica pela necessidade de compatibilizar a proteção da vontade do declarante com a tutela da confiança do declaratário. Mas se A e B tiverem efetiva e validamente celebrado o contrato de arrendamento e se A deixar de pagar a renda, o contrato pode ser resolvido, ou seja, B pode pôr termo a um negócio que existia. Se transpusermos isto para o casamento, no plano civil, podemos concluir que A e B, casando validamente, pese embora a vocação de perpetuidade que reveste o casamento, se podem divorciar, isto é, podem pôr termo à relação jurídica familiar, mas, ao invés, pode suceder que A e B casem sem que o casamento seja válido.
No plano canónico, o casamento é visto como um sacramento que, por razões teológicas, é indissolúvel. Quem casa casa-se para toda a vida. Simplesmente, para que esse ato de entrega incondicional, absoluta e ilimitada no tempo seja efetivamente um matrimónio, é necessário que se cumpram determinados requisitos. Designadamente (e como nos contratos que se celebram no plano civil) é necessário que haja vontade quando os noivos dizem o sim e se comprometem. Se tal vontade não existia ou estava por algum motivo viciada, a entrega, o compromisso deixam de existir. Não existindo, não há sacramento. O que a Igreja faz é reconhecer – no termo de um processo previsto para o efeito – que o sacramento nunca existiu. Daí falar-se de nulidade do casamento (se a Maria Filomena Mónica preferir e para não se baralhar, poderia falar, em termos não técnico-jurídicos, de declaração de inexistência do matrimónio).
Talvez a Maria Filomena Mónica não precise de jurisconsultos católicos para nada. Bastar-se-ia, porventura, com um jurisconsulto, independentemente do adjetivo que o possa suceder. Talvez tal fosse suficiente para não revelar uma ignorância teimosa em tão grande escala. Já precisa, estou certa, de um sacerdote católico que lhe permita reencontrar-se e aliviá-la de tanta amargura contra a Igreja, revelada nas insinuações infundadas, nas suspeições soezes que profere. Essas sim não merecedoras de qualquer resposta.
Professora da Faculdade de Direito de Coimbra

Comentários

Mensagens populares deste blogue

OS JOVENS DE HOJE segundo Sócrates

Hino da Padroeira

O passeio de Santo António