No princípio era a Eutanásia

ANTÓNIO BAGÃO FELIX    PÚBLICO     07.02.17

Eutanásia. Assunto transversal à ética, medicina, filosofia, ciência, direito, religião. À vida, em suma. Complexo, pela sua própria natureza e pela discussão em abstracto, face ao enfrentamento em concreto.

Numa visão cristã, a vida é um dom de Deus. Somos usufrutuários, não donos do nosso corpo. A vida é para a pessoa, mas não pertence à pessoa.

Porém, não se trata de um assunto que se esgote no plano religioso. Longe disso.

O que mais confrange nestes debates é o simplismo, a superficialidade, a trivialização, a generalização abusiva.
Escreveu Jean Guitton: “Há boas mortes, acolhidas e preparadas na sabedoria e na esperança e más mortes, impostas na revolta e no medo. Sim, a maneira de preparar a morte é verdadeiramente uma virtude ou o seu contrário”.
A eutanásia tem sido definida como “uma intervenção ou omissão deliberadas, com a intenção de terminar a vida de alguém, a seu pedido (informado, consciente e reiterado), quando este apresente sofrimento intolerável, estando em fim de vida” (sublinhados meus).
Os defensores da legalização da eutanásia falam de “evitar sofrer inutilmente “através de uma “morte digna e assistida”.
Por mais cuidado do legislador, são facilmente perceptíveis a ambiguidade de conceitos, a ténue linha entre uso e abuso, e a corrosão da fronteira entre a ética e deontologia do cuidar e a de não matar. É que não se trata só da liberdade de morrer, mas da necessidade de alguém que mate, decretada pelo Estado.  É isto avanço civilizacional? Inconstitucional, é-o, sem dúvida (“a vida humana é inviolável”, art.º 24, n.º 1 da CRP).
O que é “sofrimento intolerável”? Como se mede? O que comporta, para além da dor? E, diante de cuidados paliativos mais eficazes e do próprio avanço da medicina, como se define a fronteira do “sofrimento inútil”? Estes conceitos, aliás, resvalam danosamente, como o comprova o abuso da lei na Holanda (não esquecendo que, também aqui, a “oferta” aumenta a “procura”). E estará o legislador tão seguro de formular uma norma inatacável sobre a natureza livre, consciente e informada do pedido de eutanásia? O desabafo da “vontade de morrer” de alguns doentes não exprime, por omissão, o pedido para ser eutanasiado.
Tem havido muita confusão de conceitos, pondo tudo no mesmo saco: eutanásia activa e passiva, ortotanásia, obstinação terapêutica. Sobre esta, cito a própria posição da Igreja Católica: “A cessação de tratamentos médicos onerosos, perigosos, extraordinários ou desproporcionados aos resultados esperados, pode ser legítima. É a rejeição do ‘encarniçamento terapêutico’. Não que assim se pretenda dar a morte; simplesmente se aceita o facto de a não poder impedir. As decisões devem ser tomadas pelo paciente se para isso tiver competência e capacidade; de contrário, por quem para tal tenha direitos legais, respeitando sempre a vontade razoável e os interesses legítimos do paciente. […]. O uso dos analgésicos para aliviar os sofrimentos do moribundo, mesmo correndo-se o risco de abreviar os seus dias, pode ser moralmente conforme com a dignidade humana, se a morte não for querida, nem como fim nem como meio, mas somente prevista e tolerada como inevitável”.
Porquê tanta pressa? Temos a figura do “testamento vital”, ainda a dar os primeiros passos e quer acelerar-se tudo isto em nome de quê? Face à “inutilidade do sofrimento” na “sociedade de cansaço” quem garante que certas expressões de envelhecimento e dependência não se seguirão, em nome de um pretenso “avanço civilizacional”!
Nestas matérias, sabe-se como se começa, nunca se sabe como se acaba…

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