«Não são os outros que criam os problemas, os outros tornam-nos conscientes dos problemas que temos»

JOTDOWN.ES
ENTREVISTA A JULIAN CARRÓN

POR ÁNGEL L. FERNÁNDEZ RECUERO



Julián Carrón (Navaconcejo, 1950) completou os estudos de teologia no seminário de Madrid e foi aluno da École Biblique et Archéologique Française de Jerusalém. Ordenado sacerdote em 1975, no ano seguinte licencia-se em Teologia na Università Pontificia Comillas, com uma especialização em Sagrada Escritura. Em 1984 obtém o doutoramento em Teologia na Faculdade de Teologia da Espanha setentrional, em Burgos. É docente no Instituto de Teologia, Ciências religiosas e catequéticas San Dámaso e professor de Novo Testamento na Faculdade de Teologia San Dámaso de Madrid.
Desde 2005, é presidente da Fraternidade de Comunhão e Libertação, o mais importante movimento católico italiano.
Encontramo-nos com o Julián no bar do Hotel de las Letras de Madrid, aproveitando uma das suas visitas rápidas a Espanha. Falamos de política, razão e ciência, e explica-nos as raízes da mudança que se está a verificar na sociedade ocidental, e que tem o Iluminismo como elemento chave. Conta-nos também como é vivido o Cristianismo em Comunhão e Libertação, e de que modo é que este pode ser um factor chave do nosso futuro. Julián é acessível, amável e claro, e tem uma grande capacidade de persuasão, mesmo em relação a um ateu recalcitrante como o que o entrevista.

Em que sentido é que a sociedade ocidental se encontra perante uma crise antropológica?
Estamos a ver isso a acontecer debaixo dos nossos olhos; vemos como estão a ruir alguns pilares que julgávamos intocáveis. Pensemos nos imigrantes, na reação de muitas pessoas em relação ao fenómeno dos refugiados. Quem poderia imaginar, há apenas algumas décadas, que poderíamos construir muros na Europa, depois de termos desejado durante tantos anos derrubar o muro de Berlim. Pensemos no vazio que domina na sociedade, e que acaba por se poder transformar, como vemos, em terrorismo e em violência. Ou então olhemos para a forma como reagem os Estados Unidos ou a Europa perante os grandes desafios do nosso tempo. Esta situação, como dizia Bauman, gera insegurança e medo.

Ruíram valores? É negativo o facto que ruam esses valores?
O que são os valores? São as qualidades que nos tornam pessoas melhores. A liberdade, a generosidade ou a solidariedade são coisas bastante preciosas e fundamentais na nossa civilização. Os valores permitem-nos abraçar a diferença do outro, tornam mais fáceis para nós as relações com os que são diferentes de nós, permitem-nos sair dos nossos esquemas pré-definidos, em suma, tornam a vida mais humana, menos dura.

De onde é que devemos partir para uma construção nova?
Para uma construção nova, a primeira coisa que é preciso é perceber o que aconteceu, o que está a acontecer. Esta crise não é comparável a outras crises que atingiram a Europa nos últimos séculos; estamos diante de uma crise que o Papa Francisco define como «uma mudança de época». Que diferença existe em relação a outros momentos? Ser uma mudança que diz respeito a todos os níveis da vida humana, da relação entre pais e filhos à relação entre professores e alunos, das nossas relações com os migrantes às relações internacionais. A meu ver, estamos no fim de um mundo que nasceu com o Iluminismo. Repercorrendo rapidamente a história, a Europa viveu uma unidade religiosa como consequência da presença cristã; esta unidade religiosa foi pelos ares com a reforma protestante. Quando os europeus se cansaram de combater entre si por motivos religiosos, nas chamadas “guerras de religião”, era preciso fundar a sociedade sobre novas bases. Se já não partilhamos a religião, o que é que temos em comum que nos permita vivermos juntos? A razão, obviamente. Então, o que é que os iluministas pensaram? Criamos uma religião dentro dos limites da razão, como dirá Kant. O Papa emérito Bento XVI explica de modo muito sintético esta genial intuição do lluminismo. Durante o lluminismo, na época da “contraposição das confissões”, tentou-se salvar os valores essenciais (da vida: a pessoa, a liberdade, a razão) fundando-os sobre «uma evidência que os tornasse independentes das várias filosofias e confissões». Deste modo, pretendia-se assegurar «as bases de uma convivência e, mais genericamente, as bases da humanidade». Naquela época isto parecia possível, uma vez que «as grandes convicções de fundo criadas pelo cristianismo em grande parte resistiam e pareciam inegáveis». O reconhecimento comum destes valores permitiu superar as divisões e contraposições decorrentes do confronto entre religiões.

O que é que aconteceu desde então, do lluminismo até hoje?
Este é o problema. Estas convicções resistiram às mudanças da história? O Papa Bento, que não é um cético, afirma: «A busca de uma certeza reconfortante, que pudesse permanecer incontestada para lá de todas as diferenças, falhou». Se não percebermos que esta tentativa falhou, não perceberemos a natureza da crise e a sua profundidade. O que está a ruir diante dos nossos olhos foi aquilo que sustentou a nossa convivência nos últimos séculos, no meio de todos os desafios. Impressionou-me muito o facto de que no dia seguinte à eleição de Trump o ex-diretor do la Repubblica, um dos mais importantes jornais diários italianos, Ezio Mauro, tenha escrito: «Acreditávamos que a democracia se tinha imposto como a única religião sobrevivente. Primeiro a recusa das primaveras árabes, depois a agressão do jihadismo islamista assassino, fizeram-nos perceber que aquilo a que atribuíamos um valor universal [a democracia] tem um perímetro e um limite que são exclusivamente ocidentais». A mesma coisa defendia recentemente uma outra figura relevante do nosso tempo como Zygmunt Bauman: «Creio que estamos a assistir ao cuidadoso esventramento dos princípios da “democracia”, que se presumia que fossem intocáveis». O que significa isto? Que a tentativa de salvar os valores da vida humana, que todos reconhecemos, independentemente da origem que os gerou, falhou. Por isso a crise atual não é como as outras. Passámos por duas Guerras mundiais, a Revolução industrial, a Revolução tecnológica, e os fundamentos desta conceção iluminista da convivência resistiram no meio destas mudanças. Hoje estamos a assistir ao seu colapso. O desafio que todos temos pela frente é o de encontrar novas bases para a convivência.


Os árabes e outras culturas teriam tido que passar por esta fase iluminista para compreender a democracia tal como nós a entendemos e para lhe dar o seu verdadeiro valor?
Impressiona-me a lealdade com que o Papa emérito Bento XVI reconheceu que quando o cristianismo se transformou, contra a sua natureza, em religião de Estado, foi mérito do Iluminismo ter voltado a propor os valores originais do cristianismo e ter restituído à razão o papel que lhe cabia. Este cruzamento, que foi feito pelo cristianismo e pela cultura ocidental, também as outras religiões e culturas são chamadas a fazê-lo, qualquer que seja a modalidade com que possa acontecer. As tensões que muitos países árabes estão a viver mostram a dificuldade que o carateriza.



No teu livro A beleza desarmada estabeleces uma relação entre o terrorismo na Europa com o grande vazio que reina em muitos jovens. Como é que as duas coisas estão ligadas?
Para mim foi uma descoberta ler alguns grandes intelectuais franceses que explicam isto. Nós, de fora, podemos pensar que tudo o que aconteceu é simplesmente um problema de fundamentalismo religioso estrangeiro. Todavia, muitos dos jovens que cometeram os atentados em França tinham nascido naquele país - eram franceses de segunda ou terceira geração -, tinham recebido uma educação francesa, enquanto cidadãos da república. E no entanto, chegaram a uma situação em que não conseguiram identificar na sociedade francesa nada que fosse para eles mais interessante do que a violência. Isto deve questionar-nos. O que é que eles viveram para desenvolverem a violência? E isto não acontece apenas, como alguns analistas se obstinam em defender, com os muçulmanos: alguns dos violentos são filhos de franceses, ou de italianos, ou de espanhóis, que partem para se juntar ao Isis. Os pais muçulmanos destes jovens tiveram a mesma dificuldade de muitos filhos e pais de cristãos, ou seja, não foram capazes de comunicar a sua religião de uma forma atraente. Não é um problema só deles. A secularização é o resultado da incapacidade dos cristãos ocidentais de transmitir de uma forma atraente a fé cristã. Aconteceu-lhes a eles e a nós, e do mesmo vazio, de uns e de outros, pode nascer o fascínio do terrorismo. Ou as pessoas encontram alguma coisa pela qual valha a pena viver, ou, caso contrário, podem entregar-se ao extremismo.

Qual é o conceito de “beleza desarmada” (para além de ser um título muito bonito para um livro)?
O título do livro nasceu precisamente como resposta aos atos de terrorismo. Quando são entendidos com a profundidade de que estamos a falar, estes atos são um desafio para toda a sociedade ocidental. Perguntei-me se, quando estas pessoas chegam à Europa, onde em teoria deviam embater numa cultura e numa presença cristãs, nós cristãos temos alguma coisa para lhes oferecer. Com a expressão “beleza desarmada” quis dizer: «Nós cristãos, acreditamos ainda na atração que pode exercer a beleza desarmada da fé?». Com a “beleza desarmada” proponho uma presença cristã que seja tão atraente que torne a vida mais interessante para todos.

Comunhão e Libertação tem experiência do poder que tem esta “beleza desarmada”?
Sim. Na realidade, o nosso movimento nasce como uma tentativa de responder a este desinteresse pela fé. Luigi Giussani apercebe-se deste desinteresse nos alunos de um liceu de Milão no início dos anos cinquenta. Muitos deles, que tinham abandonado a fé, sentiram-se desafiados pela atração que exercia a sua forma de comunicar o cristianismo, como proposta à sua razão e à sua liberdade. Desde então, muitos foram aqueles que ficaram fascinados. E nós vemos, do mesmo modo, a capacidade de atração desta beleza nas circunstâncias de hoje. Estou a pensar em muitas pessoas que nos encontram nas universidades ou nos diversos ambientes de trabalho, quando se deparam com um fenómeno de humanidade diferente originada pela fé. Estou a pensar nas obras sociais com as quais procuramos responder aos problemas educativos dos jovens que têm dificuldades na escola, oferecendo-lhes uma ajuda à tarde, com a colaboração de muitos professores que disponibilizam gratuitamente o seu tempo. Quando se sentem acompanhados, muitos deles - incluindo muitos muçulmanos - têm a possibilidade de encontrar um lugar que muda as suas vidas. As suas vidas não mudam com apelos éticos. Têm de ver que alguém os ajuda, se preocupa com eles, lhes oferece gratuitamente a possibilidade de aprender. E então integram-se, estreitam relações. Isto torna possível o que poderia parecer impossível, porque estes jovens são da mesma geração daqueles que praticam a violência. O problema é aquilo que encontram quando se instalam nos nosso países.


Acreditas na capacidade da fé de suscitar uma atração naqueles jovens que não encontram um sentido para as suas vidas?
Sim, sempre que o cristianismo se apresentou na sua verdadeira natureza original; porque esta é a segunda questão fundamental: o que é o cristianismo? Muitas vezes, aquilo que foi entendido como cristianismo não é mais do que uma série de regras morais ou de aspetos sentimentais ou formalismos religiosos que não têm a capacidade de fascinar ou atrair a vida de ninguém. Conheço pessoas que não tiveram qualquer tipo de relação com a fé na família, ou nas tradições em que viveram, e que quando se encontraram diante de um cristianismo vivo, através de pessoas, ou famílias, ou realidades sociais nas quais viram de que forma a vida pode mudar, não tiveram nenhum problema em abrir-se à fé, respondendo ao desejo que nasceu neles de não perderem a beleza do que estavam a viver.


A nossa geração encarou a presença pública da Igreja em Espanha praticamente só como estando ligada às batalhas sobre a moral sexual e sobre o direito a educar nas escolas. Por que razão se reduziu deste modo aquilo que deveria ser um anúncio universal? O que é preciso para que a Igreja tenha uma modalidade de presença diferente?
É a pergunta que se colocou há muitos anos um poeta inglês, Thomas Stearns Eliot: «Foi a Igreja que abandonou a humanidade, ou a humanidade que abandonou a Igreja?». Para que a Igreja tenha uma presença diferente, só é necessária uma coisa: que nós, cristãos, saibamos aproveitar esta circunstância - e esta crise é uma oportunidade - para descobrir qual é a verdadeira natureza do cristianismo. O cristianismo é em primeiro lugar o acontecimento de Deus que se faz homem e permanece presente na história através da vida mudada daqueles que o seguem.

Como é que se comunica?
É aqui que está a questão. Aqueles que encontravam Jesus ficavam tão surpreendidos com o que acontecia quando estavam com ele que exclamavam: «Nunca vimos uma coisa assim». Experimentavam um tal fascínio que iam atrás dele. Contava-me uma irmã que, quando estava no hospital, viu entrar entre as enfermeiras uma que era diferente. Começa a fazer perguntas e descobre que ela vivia uma determinada experiência cristã. A mesma coisa aconteceu na semana seguinte, com um médico que chamou a sua atenção. Esta descoberta levou-a a pedir-lhes ajuda na gestão de hospital que está a construir na Etiópia. E justificava o seu pedido dizendo que queria que os etíopes pudessem encontrar pessoas que comunicassem a novidade de vida que nasce da fé através do modo como viviam o seu trabalho. Se não for assim, se não acontecer como no início, o cristianismo não interessará a ninguém.

O cristianismo como experiência e não como ideologia...
É claro. Só um cristianismo como experiência pode comunicar-se hoje. O fundador do nosso movimento, Dom Luigi Giussani, insistiu muito no facto de que a natureza do cristianismo é um acontecimento. Kant admitia que «se pode tranquilamente reconhecer que se o Evangelho não tivesse ensinado as normas morais universais - os valores de que falamos - na sua pura inteireza, a razão não os teria conhecido na sua plenitude. Mas, uma vez que existem, cada um só pode convencer-se da sua validade através da razão». Como outros iluministas, Kant reconhece a obra educativa e pedagógica conduzida pela Igreja para transmitir estes valores. Mas uma vez que os reconheceram, os homens não precisam de pertencer à Igreja para os manter vivos. Basta a razão para reconhecer a sua validade. O que é que acontece hoje diante dos nossos olhos? Vemos que não bastou a razão sozinha para os manter vivos. Quando os valores, que foram conhecidos através de um facto histórico, são separados da sua origem, transformam-se apenas em ideologia. Este é o falhanço diante do qual nos encontramos. Como quando desligamos o aquecimento: o calor pode conservar-se durante algum tempo tempo. Mas quando está desligado da fonte de energia, o calor não dura, e mais cedo ou mais tarde, o frio invade toda a casa.


Parto das tuas palavras: «A fé cristã não só não teme o uso pleno da razão, como o exige». Esta razão que invocas continua a ser submetida a uma moral estabelecida há dois mil anos?
A fé não está sujeita a mais nada senão ao reconhecimento da atração que uma outra pessoa exerce sobre mim. Como uma pessoa que se apaixona. Quando uma pessoa se apaixona, começa a fazer espaço para a existência do outro, porque o vê como decisivo; quando una pessoa se apaixona, começa a mudar a sua conceção individualista. Começa a ter presente o outro na forma de conceber o seu tempo, o seu dinheiro, o uso das coisas que possui. Ou seja, a ética é a consequência de um acontecimento que acontece na vida. Ninguém diz: «Apaixonei-me e, desgraçadamente, agora cabe-me sair com a rapariga por quem me apaixonei». Sair com a rapariga por quem me apaixonei é a consequência ética normal de um acontecimento. Se não me apetece sair com ela... talvez não seja verdade que me tenha apaixonado! Nenhuma imposição poderá ter a força de convicção do facto de se apaixonar. O mesmo acontece com o cristianismo. O cristianismo é um acontecimento com este alcance. Aqueles que encontraram Jesus deram por eles, surpreendentemente, a viver a vida quotidiana de um outro modo. É um modo novo de viver as coisas habituais.



E a ciência, ou a arte, não têm a mesma atração, ou uma ainda maior, em relação à fé, para dar sentido à vida? São compatíveis?
A ciência e a arte exprimem, cada uma a seu modo, a tentativa do homem de entrar na profundidade da realidade. Precisamente por isso, o vértice da investigação científica e da arte é o sentido do mistério, o acesso a qualquer coisa que, em última instância, não é dominável. Impressionou-me sempre que um cientista da craveira de Einstein dissesse que a experiência mais bonita que podemos fazer é a experiência do mistério. É a emoção fundamental que se capta no coração da verdadeira arte e da verdadeira ciência. Quem não a conhece e não se interroga a esse respeito, não se espanta, está como morto, os seus olhos estão enevoados. Por isso a arte e a ciência têm um valor enorme. O problema é quando a vida urge com toda a sua necessidade fundamental de sentido. É aqui que uma pessoa tem de ver se a ciência e a arte têm a capacidade de responder a esta urgência, de iluminar uma circunstância dolorosa, de dar a energia para poder vivê-la e não acabar no desespero. O cristianismo é o anúncio que a profundidade da realidade se tornou um acontecimento na vida do homem.



Estou a pensar nos grandes desafios da ciência de hoje, como a genética, a inteligência artificial ou a compreensão dos mecanismos do cérebro, e só vejo obstáculos, por parte da religião, ao seu desenvolvimento...
Não creio que a religião em si tenha objeções, a questão é que aqui se colocam problemas que têm a ver com o que é o homem, a sua dignidade, etc. Trata-se de problemas éticos que todos temos pela frente. Por exemplo, quando se coloca a hipótese de construir um robot que possa ter uma certa autonomia, levamos todos as mãos à cabeça, pois podem ser desencadeados efeitos incontroláveis; torna-se, portanto, um problema que tem a ver com a vida e com o tipo de sociedade que queremos criar.



A Igreja e a arte contemporânea são duas belezas que parecem radicalmente afastadas uma da outra e que interagem de forma conflituosa. Como é que podem voltar a encontrar-se?
Penso que a Igreja não tem nenhuma desconfiança em relação à beleza. A obra de arte faz vibrar toda a experiência humana. Uma canção, uma poesia, um quadro suscitam em nós tristezas e alegrias que não conheceríamos de outro modo. Por isso a fé e a arte não só não são incompatíveis, como o gosto da beleza pertence ao homem de fé, ao homem consciente de si. Como dizia São Tomás de Aquino, «a beleza é o esplendor da verdade». A arte é a busca, não garantida a priori, da beleza e precisa de homens que estejam dispostos a deixar-se interpelar pela verdade. É a tensão para a verdade o que qualifica a tentativa, independentemente do resultado, que pode ser discutível.



Não só não estavam em contraste, como historicamente houve momentos em que a Igreja inspirou obras de arte incríveis, até mesmo da parte de artistas que não tinham fé; e no entanto, agora não é de todo assim. Então, por que razão não existe este diálogo? De que forma é que a Igreja pode mudar?
O facto de historicamente não ter sido assim - basta reconhecer o enorme património cultural da Igreja - mostra que não existe uma oposição de princípio entre a fé cristã e a arte. Pensemos em Gaudí e na sua Sagrada Família. Pode acontecer que às vezes se torne difícil o reconhecimento de uma ou de outra expressão artística. Eu não posso falar em geral de toda a Igreja. Nós pertencemos a um movimento no qual Giussani sempre nos convidou a ler poetas, a ouvir música, a entusiasmarmo-nos diante das obras de grandes artistas como Giotto ou Caravaggio. Por exemplo, propõe-nos ler Leopardi, o que era quase um escândalo para uma certa mentalidade clerical. Começou a aprender de cor as suas poesias quando tinha treze anos, e durante um ano não fez mais nada senão ler Leopardi: para ele eram a forma da relação e da familiaridade com o Mistério.



Que liberdade, que segurança, tem uma pessoa de ter naquilo que traz consigo, para poder entrar em diálogo, inclusive com quem se supõe que esteja totalmente afastado de si?
A liberdade no diálogo deriva da estima da experiência humana que cada um vive. Esta estima permite entrar em relação com a riqueza da experiência do outro para enriquecer com a sua perspetiva. Porque é que nós dois estamos a falar? Porque temos interesse em nos conhecermos, em partilharmos as perspetivas com que enfrentamos os desafios da vida, independentemente de quais são as respostas que iremos oferecer aos leitores. Estamos interessados um no outro. O outro é um bem. Podemos dizer com Terêncio: «Nada do que é humano me é estranho». E quando uma pessoa tem esta certeza, não tem nenhum problema em dialogar.


Zygmunt Bauman afirma que na realidade de hoje não servem de nada as barreiras, os muros. Partilha da sua opinião?
Acho muito interessante a observação de Bauman sobre os desafios da imigração. Podemos construir todos os muros que quisermos, e tentar mandar todos para casa, mas quando tivermos mandado para casa todos aqueles que não nos agradam, começaremos a dar-nos conta que não teremos ainda iniciado a lançar as bases para enfrentar os problemas que temos. Porque não são os outros que criam os problemas, os outros tornam-nos conscientes dos problemas que temos. O vazio que um emigrante encontra quando chega, não é ele que o cria. O outro faz com que nos demos conta de que a sociedade não tem nada de atraente a oferecer como alternativa à violência terrorista. Mas isto não acontece só hoje com aquilo a que chamamos terrorismo islâmico. Em Itália, como em Espanha, vivemos anos de terrorismo, que geraram muita violência, que não tinha nada que ver com o terrorismo islâmico. Esta ligação que estabelecemos (entre terrorismo e religião) às vezes é muito superficial.



Um dos efeitos do terrorismo é que o outro se torna uma ameaça, com o advento da “pós-verdade” e a necessária cumplicidade dos media. Como é que podemos sair deste engano?
Este engano só se rompe se um dos interlocutores não responder à ameaça do outro com a mesma moeda. Penso que o outro é um bem porque, independentemente do facto de que eu esteja de acordo ou não com as suas ideias, ou da forma como o outro me vê, ele é sempre para mim um fator de amadurecimento. Muitas vezes regressei a casa ferido porque determinadas coisas que tinha dito a alguém me tinham desagradado, e no dia seguinte acordava com aquela ferida, e não conseguia ler o jornal, ouvir um amigo, ou ler alguma coisa de interessante sem a dor provocada por aquela ferida. Isto não quer dizer que o outro tivesse razão. Às vezes podia não ter, mas não era essa a questão. A sua provocação ajudou-me a ficar desperto, atento, a manter em aberto as perguntas com as quais captar as respostas que de outra maneira teriam passado totalmente desapercebidas. Neste sentido, qualquer ocasião como esta foi um bem para mim, não porque seja tudo cor-de-rosa, melífluo, mas a relação com o outro é sempre uma relação dramática, mesmo com as pessoas que amas. Porquê? Porque me desafiam, porque não são um prolongamento de mim mesmo: são uma alteridade, e a alteridade provoca-te sempre. Uma crise, diz Hannah Arendt, faz-nos sempre regressar às perguntas, e portanto pode ser uma ocasião de crescimento.


Estás mais com Hobbes ou com Rousseau?
É difícil decidir, porque me parece que ambos defendem aspetos reais, mas incompletos, da experiência humana. O homem histórico, que cada um de nós é, tem dentro de si uma ferida. Pensemos na imagem de uma criança nos braços da sua mãe, com aquela abertura, aquela curiosidade, aquele desejo de aderir aos seus pais. O problema é que depois a criança vive num contexto social que não facilita, em muitas ocasiões, que ela permaneça nesta curiosidade. Por causa das feridas do nosso mal, dos nossos problemas e das nossas incompreensões, do mal causado por outros, nascem as suspeitas. Lembro-me de quando, há alguns anos, fiz um acampamento com um grupo de jovens numa comunidade criada pela Câmara Municipal de Madrid para acolher crianças que tinham tido problemas na família. O último que chegou tinha espancado a sua mãe. Recordo a dificuldade que os educadores tinham em relacionar-se com eles, porque se tinha alterado a relação de confiança que é própria das crianças ao nascer. Tinham sofrido de tal forma que já não eram capazes de responder aos esforços generosos dos educadores, e a única coisa que faziam era defender-se. Aquela posição não era original, tinha surgido como consequência de uma perturbação na relação normal daquelas crianças com a realidade. Quando uma pessoa foi ferida, põe-se na defensiva. A questão é encontrar um lugar que cure as nossas feridas.


Nós, europeus, somos herdeiros do cristianismo e dos seus valores; poderá ser a “bondade” cristã, que a esquerda bem pensante faz gala em referir, o calcanhar de Aquiles da nossa sociedade ocidental perante os problemas geo-políticos que temos?
Depende daquilo que entendemos exatamente por “bondade” cristã. Quando apresentei o livro A beleza desarmada no Brasil, estava comigo um juiz que me contou que há alguns anos tinha tido de julgar um homem por causa de um delito, condenou-o, e quando lhe comunicou a sentença, este disse-lhe: «Olhe, Sr. Juiz, eu não estou preparado para ir para a cadeia». Ele respondeu: «Eu percebo-te, ninguém está preparado para ir para a cadeia. Mas tu cometeste um crime, e se não apresentares recurso, tens de ir para a cadeia». Ao que o outro respondeu: «Não nego o crime, e não discuto a pena, mas tenho uma situação tão embrulhada na minha família que, se não resolver algumas coisas antes de ir para a cadeia, será ainda pior. Se o senhor me conceder dez dias, posso resolver as coisas na família e depois cumpro a pena». O juiz ficou espantado, e disse-lhe: «Vejo a sinceridade da tua posição, e concedo-te trinta dias». No final dos trinta dias, o condenado apresentou-se diante do juiz. E ele ficou de tal forma surpreendido que, em vez de o entregar à polícia para que o algemasse e o levasse à prisão, deu-lhe diretamente a morada para que ele fosse sozinho e começasse a cumprir a pena. Podemos pensar que esta forma de agir é ingénua, mas de facto no Brasil existe um tipo de prisões onde não há polícias. Nós podemos pensar que isto é ingénuo: estas prisões baixaram a percentagem de recidiva dos 80% das prisões normais para 15%, e tudo pelo facto de desafiarem o coração do homem, como fez este juiz. Ninguém acredita em nós, mas os dados estão aqui. Este sistema é tão apreciado que, nos acordos de paz recentemente assinados entre o governo e a guerrilha na Colômbia, onde é necessária a reintegração social de milhares de terroristas (porque de outra maneira não se alcançaria a paz social durante séculos), foi este o sistema prisional adotado. Não significa que este tipo de centros seja sempre válido. Quando tu dás confiança, o outro pode trair, mas se não começarmos a agir assim não poderemos gerar uma realidade nova, uma sociedade nova, uma maneira diferente de nos relacionarmos; permaneceremos sempre bloqueados no nosso sistema e portanto será difícil que alguma coisa mude. Por isso percebo que para muitos o cristianismo pareça ingénuo. É preciso saber se existe a possibilidade de começar a olhar para as pessoas de outra maneira, para que as pessoas comecem a pensar que é possível viver de maneira diferente, que é possível um modo totalmente diferente de estar na realidade. «Do amor não se foge», respondeu um detido que tinha fugido de todas as prisões onde estivera antes a um juiz que lhe perguntava porque razão não tinha fugido daquela onde se encontra atualmente; porque nesta prisão, tinha experimentado um olhar diferente sobre si.


Quando entrevistámos o Javier Prades, ele dizia-nos que o cristianismo é a religião mais perseguida do planeta. A que se deve isso?
Penso que as causas podem ser diferentes. Às vezes nós, cristãos, cometemos erros, e portanto isso pode justificar alguma hostilidade. Mas parece-me que reconduzir as perseguições aos erros não explica suficientemente o problema, porque na maioria dos casos o tipo de violência que é desencadeada tem como objetivo pessoas inocentes. Pôr uma bomba numa igreja cheia de pessoas sem nenhum poder, ou matar um sacerdote francês porque está a celebrar missa não me parece que possa ser motivado simplesmente pelos erros dos cristãos. Este aparecimento desarmado de Deus feito homem (para salvar os homens), o facto de que Deus se despoje do seu poder de Deus e se torne num ser humano que pode ser confundido, desprezado, cruxificado, é algo que desafia a razão humana. Como consequência, uma presença assim pode provocar uma reação violenta naqueles que não querem aceitar o desafio que o cristianismo coloca na história, como aconteceu com Cristo. Porquê? O cristianismo tem a pretensão de salvar a vida, não porque o queira impor com a violência, mas porque promete alguma coisa que corresponde de tal forma ao que o coração do homem deseja, que uma pessoa fica tocada: e então, ou fica grata por ter encontrado uma resposta, ou então cria em si uma violência enorme porque o recusa, e tem que justificar dalguma maneira a sua recusa.


Devíamos regressar a um Estado confessional, ou a uma Europa baseada nas leis cristãs?
Penso que a Igreja percorreu um caminho enorme, dos tempos de Constantino até ao Concílio Vaticano II, que lhe permitiu tomar cada vez mais consciência de que a única modalidade de comunicar a fé cristã passa através da liberdade. Não porque a Igreja tenha dito: «como não conseguimos convencer os homens da verdade do cristianismo, pelo menos defendemos a liberdade religiosa», mas porque foi ao fundo da natureza da verdade. Se me permite, cito uma afirmação do Concílio Vaticano II que é fundamental para entender este ponto: «A verdade não se impõe senão pela força da própria verdade». Ou seja, a verdade não precisa de nenhum outro apoio exterior à verdade, a não ser o fascínio da própria verdade, a atração da verdade. Portanto, o grande desafio que a Igreja hoje tem diante de si não é regressar a um estado confessional, mas testemunhar a fé de modo tal que possa desafiar a razão e a liberdade do homem. Foi deste modo que o cristianismo começou. A razão e a liberdade são decisivas para o cristianismo, porque Jesus não queria que as pessoas acreditassem nele de forma ingénua, crédula, ou forçada. A fé cristã exige o uso da razão e da liberdade; sem elas, não poderá interessar a ninguém. Por isso só num espaço livre de constrições é que a fé cristã poderá tornar-se interessante para o homem de hoje, porque para o homem moderno (e nisto o lluminismo desempenhou um papel fundamental) não existe bem maior do que a liberdade. Ninguém poderia hoje pensar em propor ou impor alguma coisa que fosse contra a liberdade.


Quando entrevistámos o Juan Manuel de Prada, ele dizia-nos que «quem tem a faca na mão é aquele que pode permitir-se o luxo de adaptar a realidade às suas premissas ideológicas». Como é que a Igreja pode vencer a tentação da hegemonia, do uso do poder para afirmar a fé?
A tentação da hegemonia só se pode ultrapassar aprofundando a própria natureza da fé, não como consequência de uma nova estratégia para convencer o outro. Não existe outra maneira. «A verdade não se impõe senão pela força da própria verdade». O cristianismo difunde-se no império romano sob as perseguições, sem nenhum tipo de hegemonia, e poucos períodos da história da Igreja foram tão missionários, tão capazes de difundir a fé. O cristianismo, portanto, está à vontade no espaço livre, porque este faz com que nós, cristãos, não possamos fundamentar-nos em nenhum tipo de poder, mas única e exclusivamente sobre a beleza daquilo que vivemos.

Conta-nos o que é Comunhão e Libertação e em que é que se distingue dos outros movimentos.
Comunhão e Libertação é um movimento que nasce em Milão nos anos cinquenta, quando o cristianismo era dominante, e todas as grandes organizações e associações cristãs estavam repletas de fiéis. Luigi Giussani, o fundador, começou a ver que os alunos do liceu que provinham de famílias cristãs, que tinham feito a primeira comunhão, que tinham participado nas atividades das paróquias e que tinham recebido o crisma, chegavam à escola, na maioria dos casos, sem fé. Deu-se conta então de que isso não podia simplesmente ser atribuído ao desinteresse pela fé, mas ao facto de a fé não ter sido apresentada, a nenhum destes jovens, na sua relação com os interesses da vida. Desde o princípio que ele quer mostrar a pertinência da fé às exigências da vida, aos problemas concretos da vida. Isto fez com que muitos daqueles estudantes começassem novamente a medir-se com a fé, independentemente do facto de terem já decidido que não lhes interessava. Desde então, tudo o que Giussani fez no movimento no seu todo foi oferecer às gerações que em todos estes anos encontrámos esta possibilidade de entender a conveniência humana da fé para enfrentar os problemas da vida que todos temos. Isto, muito simplesmente, é o cristianismo. Cristo não veio para nos complicar a vida, mas para nos ajudar a enfrentar os problemas e para nos fazer viver no seio de uma companhia sem a qual tudo se torna mais complicado.

Como é que se chega de Navaconcejo, na Estremadura, aonde estás agora?
É um mistério, era a última coisa que eu pensava que me podia acontecer. Quando Giussani começou a dizer que a condução do movimento devia ser uma amizade italo-espanhola, ninguém pensava que uma coisa destas pudesse mesmo acontecer, nem mesmo nós próprios. Víamos uma tal desproporção entre a pequena realidade que éramos em Espanha e as dimensões do movimento em Itália, que não passava pela cabeça de ninguém pensar numa coisa destas. Depois de nos termos conhecido, começou a insistir para eu lhe dar uma mão, e eu, obviamente, sempre lhe ofereci a minha disponibilidade. No fim, acabou por conseguir fazer-me ir para Milão.


A atração ou o interesse por Comunhão e Libertação veio-te do conhecimento, uma vez que eras um especialista em Sagrada Escritura, ou foi, em geral, uma experiência pessoal?
Foi uma experiência pessoal. Quando fui ordenado sacerdote, mandaram-me para uma vila perto de Madrid. Ali vi crescer os grandes bairros residenciais populares dos arredores da cidade, com tudo o que significava o problema da imigração interna, as mudanças, as dificuldades, etc. Via que algumas das coisas que tinha recebido, e às quais tinha aderido pacificamente durante o período do seminário, não eram suficientes para enfrentar alguns dos desafios quer tinha à minha frente. Foi isso que me fez interessar pelo movimento: tinha uma proposta para viver o cristianismo em que não era necessário censurar nada do que acontecia; era um modo de estar na realidade que eu queria partilhar. O primeiro sinal de mudança foi o meu modo de dar aulas, a forma como estava com os meus alunos nas aulas de religião que dava numa escola. Aquilo que me tinha acontecido ao encontrar o movimento permitiu-me começar a desafiá-los. Percebia que aquilo que me tinha acontecido a mim podia ser interessante para os outros.


Em que sentido é que no CL a fé cristã é vivida numa dimensão atual?
A fé, como diz Giussani, é o reconhecimento da presença de Cristo aqui e agora, da sua presença dentro de um sinal humano. E o caminho que ele propõe é fundamentalmente aquele a que ele chamava a personalização da fé. A única possibilidade que a fé tem de ser entendida como conveniente, é que cada um a possa verificar na vida, ou seja, que a vida, as dificuldades, as circunstâncias a que ninguém é poupado, possam começar a ser vividas com uma dignidade, uma gratidão e uma luz antes desconhecidas. Aquilo que procuramos fazer é precisamente acompanharmo-nos neste processo de amadurecimento da fé, para que as pessoas que nos encontram nos ambientes onde estamos, no trabalho, na família, com os amigos ou nas obras sociais que fazemos, possam dar-se conta do que significa hoje a fé cristã vivida “ao ar livre”.

O indivíduo e a sua realização marcaram o progresso do homem na sociedade ocidental. De que modo é que uma fidelidade e uma comunhão com a Igreja católica e os seus pastores são compatíveis com o progresso?
Há alguns dias, estava num encontro com um grande grupo de alunos universitários italianos, e houve uma pessoa que me fez uma pergunta parecida com isto: «Afirmar Cristo como a coisa mais importante não desvaloriza ou torna menos interessante a realidade?». Bastou-me responder-lhe com uma outra pergunta: «Mas já te apaixonaste alguma vez?». «Sim», respondeu-me, e eu disse-lhe: «E quando te apaixonaste, a realidade ganhou ou perdeu interesse?». Imediatamente me respondeu: «As coisas ficaram mais atraentes!». O cristianismo introduz na vida uma presença com uma atração tal, que faz com que tudo se torne mais interessante, também o progresso. Uma pessoa apercebe-se disto quando se apaixona. Qualquer facto, qualquer circunstância, ainda que banal, por exemplo, cozinhar para a pessoa a quem queremos bem, se torna um acontecimento. Giussani repetia-nos muitas vezes uma frase de Romano Guardini: «Na experiência de um grande amor, tudo se torna acontecimento». Por isso, na história de um grande amor, como é o cristianismo, tudo ganha uma dimensão que de outra forma não teria. Vemo-lo na experiência do amor humano; quando na vida das pessoas o amor se ofusca, aquilo que dantes era uma ocasião para dizer «como te amo!» através do gesto de cozinhar um prato, torna-se uma obrigação, um peso do qual se queixar: «Enquanto tu vais trabalhar, eu estou aqui a cozinhar para ti...». Perde-se toda a densidade de que dantes este gesto estava cheio.

Como é que o CL entendeu o desejo no seio da tradição?
Acabei de pregar a 4 mil universitários os Exercícios que tinham como título «A ti se dirige todo o meu desejo». A quem é que podemos dizer estas palavras? A quem se dirige todo o meu desejo? Para a maioria das pessoas, o desejo é alguma coisa que é preciso domesticar ou controlar. E não apenas hoje: antes do cristianismo, no mundo clássico, a hybris, o exagero, era algo de perigoso, porque empurrar o desejo para lá dos próprios limites podia conduzir à loucura. Portanto, a questão decisiva era domesticar o desejo para o reduzir e mantê-lo dentro de certos limites. A virtude era a moderação. Ao contrário, o único que não tem medo de enfrentar o desejo do homem em toda a sua potência é o cristão. Graças ao encontro com Cristo, o cristão não tem medo da imensidão do desejo humano, ao contrário do que acontecia na antiguidade. Porquê? Porque Cristo abraça todo o seu desejo. Só neste abraço é que o nosso desejo se revela em toda a sua potência e profundidade. Uma das frases do Evangelho que Giussani citava constantemente era esta: «De que serve ao homem ganhar o mundo inteiro, se depois se perder a ele mesmo?». Muitas vezes nós interpretámos estas palavras com uma leitura moralista, como se indicassem o máximo do que Jesus exige, ao passo que na realidade, é o gesto mais comovente de Cristo que olha para toda a profundidade do coração do homem, abraçando-a: «Olha que o teu coração é tão grande, que só o Mistério feito carne está à sua altura».


Quando te oiço falar do enamoramento, do amor, surge-me a dúvida se alguma vez estiveste apaixonado.
Ainda que tenha entrado no seminário em pequeno, apaixonei-me. Mas devido à consciência que tinha do desejo e graças à experiência que tinha de Cristo, na qual encontrava uma plenitude afetiva que nenhuma outra coisa me dava, pude canalizar e olhar de frente para o meu desejo, sem o censurar nem o sublimar, mas desafiando-o. Se não tivesse vivido esta experiência pessoal, não poderia falar aos jovens universitários daquela maneira, desenvolvendo todo um fim-de-semana centrado sobre o desejo, incitando-os a não reduzirem o seu desejo, a não se contentarem com as migalhas que lhes são dadas. Porque o problema é este: como é que a sociedade responde ao desejo de um adolescente? A maior parte das vezes, oferece coisas que não lhes poderão interessar por muito tempo. É normal, quando somos pequenos, podermos pensar que aquilo que nos oferecem no Natal é tudo aquilo que desejamos. Depois, com o tempo, damo-nos conta de que a casa está cheia de bonecas e brinquedos que já não nos interessam. Então podemos substituir os brinquedos pelo telemóvel ou por novos artifícios, e mais tarde por pessoas..., mas o problema é se existe alguma coisa adequada à natureza do desejo. Este é o desafio que a sociedade tem pela frente. Já o tinha antes de Cristo, tem-no depois de Cristo e tê-lo-á no futuro.



O CL define-se como um movimento cristão, em vez de católico. Isto não acontece só com o CL, porque toda a gente, quando quer falar da parte sã da religião, fala dos cristãos, nunca dos católicos. A que se deve este uso do termo “cristão” em vez de “católico”?
Não é seguramente pelo desejo de nos distinguirmos do catolicismo, porque se há uma coisa que o movimento demonstrou em toda a sua existência foi o vínculo pleno e total com o Papa e a Igreja. Não existem dúvidas sobre isto. Quando falamos e insistimos no cristianismo, não é para nos distinguirmos do catolicismo, mas para regressar à natureza original do cristianismo, que é “católico” por definição, ou seja, universal, para todos.

A libertação de Comunhão e Libertação é a mesma de que fala a teologia da libertação?
A questão é qual é a libertação que responde a toda a esperança do homem. Evidentemente que o pedido de libertação é mais amplo e profundo do que a libertação material ou económica, tem a ver com a totalidade da vida do homem. Este facto revela-se na experiência, e por isso para o compreender é preciso partir desta, de quando nos sentimos livres. Sentimos que somos livres quando um desejo que temos se realiza. Se temos um filho que quer ir a uma festa e lhe dizemos que não, ele sente a sua liberdade mortificada. Se, pelo contrário, lhe dissermos que sim, fica contentíssimo, porque o seu desejo se pode realizar. O problema da liberdade é que o homem não deseja apenas ir a uma festa, mas deseja ser livre, quer ver realizado o desejo imenso que sente em cada momento da sua vida, na vida de todos os dias, esta vida sitiada pelos hábitos. O que é que torna possível a libertação, para não acabarmos, como diz Eliot, por perder a vida vivendo? Alguns pensam que é a libertação da pobreza. Esta é, evidentemente, uma parte da resposta. Mas não é suficiente. Quantas pessoas conhecemos que satisfizeram as suas necessidades fundamentais e não estão contentes? O problema é se encontramos alguma coisa na vida que satisfaça de tal forma o nosso desejo, que nos torna livres de tudo o resto. A libertação é a comunhão com Cristo, que se torna experimentável na relação com Cristo presente na companhia cristã que, vivida de forma autêntica, se posiciona no mundo como fator de humanização real.

Pode alcançar-se a liberdade através da ausência de laços?
Não. Ainda que em determinados momentos o tenhamos pensado, com o tempo descobrimos que não basta não ter laços para sermos livres. Nós hoje desembaraçámo-nos de todos os vínculos, mas nem por isso as pessoas estão mais satisfeitas. As pessoas começam a dar-se conta de que, para serem livres, não basta não terem laços. É necessária alguma coisa pela qual valha a pena usar a liberdade. Trata-se de encontrar um motivo pelo o qual valha a pena mexer-se, envolver-se com alguém ou com alguma coisa. Se não se encontra, as pessoas começam a ter medo da liberdade. É interessante que alguém como Kafka já o dissesse: «Tememos a liberdade e a responsabilidade, e portanto preferimos sufocar atrás das barras que nos construímos». Também Bauman dizia que este medo da liberdade é aquilo que define hoje a nossa sociedade, como se vê em relação aos imigrantes. Porquê? Porque se perderam as relações interpessoais, e isto deixou o homem ainda mais desarmado. E isto gera medo. Então, o que é que torna possível voltar a reconstruir a confiança nas relações, através das quais podemos começar novamente a viver uma vida mais humana? Este é o desafio que temos hoje diante de nós.


Na Evangelii gaudium o Papa Francisco diz que estamos submersos numa economia que mata e exclui. Há necessidade de modelos de economia social e solidária?
Certamente. Precisamos de uma economia mais humana, que responda melhor ao bem comum. Por que razão são tão importantes o bem comum, a ecologia, a solidariedade? Porque todas estas coisas contribuem para gerar o tipo de humanidade e de sociedade que desejamos. Durante anos, fomos indiferentes aos países do Terceiro Mundo. Agora que estes nos estão a colocar problemas e começamos a ver as coisas que eles podem pôr em risco, damo-nos conta de que teria sido pelo menos mais adequado, e teria custado muito menos vidas, se tivéssemos partilhado a vida com eles e criado riqueza naqueles locais, em vez de os despojarmos de todos os seus recursos. Se tivéssemos colaborado para o seu desenvolvimento e favorecido uma sociedade sustentável, agora não estaríamos aqui a tentar levantar muros.



O Papa Francisco encontrou resistências internas às suas propostas, bastante avançadas, e eu, lendo o livro [A beleza desarmada] pensei que talvez tu também tivesses encontrado algumas resistências no teu movimento. É assim?
Evidentemente que sim, nalguns casos. O Papa representou e representa uma revolução. Numa realidade que tem uma dimensão como a nossa, nem todos reagiram com a mesma prontidão, tal como vemos também na vida da Igreja. Nós não somos diferentes. A meu ver, tudo depende um pouco daquilo que dizíamos no início: se compreendemos qual é a natureza do desafio. Só se pode compreender o Papa Francisco se compreendermos qual é a natureza do desafio diante do qual nos encontramos. Caso contrário, pensamos que é apenas uma questão de sotaque, por o Papa vir da América Latina, e assim ficaremos à superfície.

Como é a relação entre o Papa Francisco e o CL?
Muito boa. Tivemos a oportunidade de estar com ele há pouco tempo. Acabou de nos enviar uma carta.

Que significado tem essa carta?
É um gesto de ternura do Papa, que torna evidente como nos acompanha de perto. O Papa disse-me, diante de toda a gente, que para ele, quando era arcebispo de Buenos Aires, ler Giussani foi um bem. Está amplamente em sintonia com a nossa forma de viver o cristianismo como encontro, como acontecimento. Mais ainda, a sintonia está precisamente na origem, devido à sua forma específica de entender a realidade. Por outro lado, o Papa acompanha-nos no caminho que temos de fazer, convidando-nos constantemente a regressar à origem, para que o movimento possa dar o contributo para o qual o Espírito Santo suscita este carisma na Igreja.

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