O partido que é quinta-feira
JOÃO CÉSAR DAS NEVES
DN 2015.02.18
A Grécia vive, no meio da desgraça, momentos empolgantes. A vitória clara do Syriza, partido de extrema-esquerda, criou uma situação que a Europa não vivia desde a revolução portuguesa de 1974. De um lado existe muita gente cheia de alegria e esperança, ansiando por soluções decisivas para as dificuldades. Do outro lado estão os que temem o descalabro gerado pelos radicais. Ambos em breve aprenderão a lição de Gabriel Syme.
O livro de 1908, O Homem Que Era Quinta--Feira: Um Pesadelo, de G. K. Chesterton, é uma genial descrição dos dramas existenciais contemporâneos. Se ainda não o conhece, recomendo que deixe este texto e vá ler a pequena novela, que bem merece, regressando só depois, pois as próximas linhas revelarão a engenhosa surpresa do enredo.
Na história o generoso poeta está convencido da existência de uma terrível conspiração anarquista para destruir a sociedade. Apostado a sabotá-la, Syme entra disfarçado no Supremo Conselho terrorista para destruir a cabala. Através de inúmeras peripécias, vai descobrindo que cada um dos sinistros líderes revolucionários é afinal exactamente como ele: um defensor da lei e da ordem camuflado, tentando clandestinamente minar a revolução. No final, toda a trama se resume ao líder supremo anarquista, Domingo, que se revela como a própria natureza que nos rodeia.
Não é difícil constatar que quer o Syriza quer os seus adversários se consideram envolvidos numa terrível conspiração global. Os esquerdistas culpam capitalismo, banca, União Europeia e outras forças pela desgraça da Grécia, enquanto estes e outros condenam Syriza e forças afins disso mesmo. Falando com cada um dos envolvidos descobrimos que todos, de todos os lados, se consideram vítimas inocentes de terríveis maldades alheias. Mas os esforços de cada um para combater o mal são, afinal, aquilo que os outros acusam de maquinações maléficas.
O problema está longe de se resumir à Grécia, embora aqui, como nas chamadas «primaveras árabes», os contornos sejam mais claros e dolorosos, devido a terríveis catástrofes. O crescente conflito entre democratas e republicanos nos Estados Unidos, como as recentes reviravoltas na Índia ou os debates portugueses sobre a crise, mostram claros paralelos com as aventuras de Syme. Em todos estes casos, inúmeras pessoas acham-se alvos de conspirações grandiosas, acusando outros que, afinal, são exactamente iguais a si.
O caso Syriza é especial porque, devido ao sucesso eleitoral por que tanto lutou, todos os véus caíram. Os ministros, que há meses eram contestatários românticos sem responsabilidade, encontram-se face a face com um dos mais ingovernáveis países da Europa. Durante umas semanas ainda poderão jogar a desculpa da maldade comunitária mas, se não se demitirem para regressar ao conforto da crítica inconsciente, terão mesmo de acabar por enfrentar os problemas nacionais e construir, lenta e cuidadosamente, caminhos de solução. A retórica incendiária, tão eficaz nas eleições, pouco ou nada ajuda a melhorar a Grécia.
Pior, neste caso como em tantos outros, encontra-se também o inverso da novela. Em vez de termos terroristas que afinal são polícias disfarçados, o Syriza constatará que muitos dos seus eleitores são culpados de defender benesses e privilégios insustentáveis que, afinal, são a verdadeira causa da crise. Nessa altura entenderão, como perante a personagem do terrível Domingo de Chesterton, que o seu verdadeiro inimigo é a simples aritmética.
Repudiar a dívida, a resposta preferida dos extremistas de todas as nacionalidades, nada contribui para eliminar a máquina que criara anteriormente essa carga. Abandonar a redução de despesas e aumentar impostos, que repudiavam tão vigorosamente como austeridade, implica ver a dívida regressar ao níveis de antes do repúdio, com a agravante de que esse repúdio terá fechado as portas de muitos credores respeitáveis e aumentado os juros dos demais.
O verdadeiro problema da Grécia, como aliás de Portugal, é construir um Estado que se consiga sustentar sem recorrer a estrangeiros. Estes, que há décadas sucessivamente canalizam milhões para os países, começam finalmente a perder a paciência. Porque a crise de 2015 não é a primeira, nem a décima vez que a Grécia viola os acordos, pedindo nova ajuda para finalmente resolver a situação, sem de facto nunca chegar a fazê-lo.
Esta vez será diferente? O Syriza tem a enorme vantagem de apresentar caras e ideias novas para enfrentar o velho problema. Assim se deixe de poesias e encare com seriedade o drama grego.
DN 2015.02.18
A Grécia vive, no meio da desgraça, momentos empolgantes. A vitória clara do Syriza, partido de extrema-esquerda, criou uma situação que a Europa não vivia desde a revolução portuguesa de 1974. De um lado existe muita gente cheia de alegria e esperança, ansiando por soluções decisivas para as dificuldades. Do outro lado estão os que temem o descalabro gerado pelos radicais. Ambos em breve aprenderão a lição de Gabriel Syme.
O livro de 1908, O Homem Que Era Quinta--Feira: Um Pesadelo, de G. K. Chesterton, é uma genial descrição dos dramas existenciais contemporâneos. Se ainda não o conhece, recomendo que deixe este texto e vá ler a pequena novela, que bem merece, regressando só depois, pois as próximas linhas revelarão a engenhosa surpresa do enredo.
Na história o generoso poeta está convencido da existência de uma terrível conspiração anarquista para destruir a sociedade. Apostado a sabotá-la, Syme entra disfarçado no Supremo Conselho terrorista para destruir a cabala. Através de inúmeras peripécias, vai descobrindo que cada um dos sinistros líderes revolucionários é afinal exactamente como ele: um defensor da lei e da ordem camuflado, tentando clandestinamente minar a revolução. No final, toda a trama se resume ao líder supremo anarquista, Domingo, que se revela como a própria natureza que nos rodeia.
Não é difícil constatar que quer o Syriza quer os seus adversários se consideram envolvidos numa terrível conspiração global. Os esquerdistas culpam capitalismo, banca, União Europeia e outras forças pela desgraça da Grécia, enquanto estes e outros condenam Syriza e forças afins disso mesmo. Falando com cada um dos envolvidos descobrimos que todos, de todos os lados, se consideram vítimas inocentes de terríveis maldades alheias. Mas os esforços de cada um para combater o mal são, afinal, aquilo que os outros acusam de maquinações maléficas.
O problema está longe de se resumir à Grécia, embora aqui, como nas chamadas «primaveras árabes», os contornos sejam mais claros e dolorosos, devido a terríveis catástrofes. O crescente conflito entre democratas e republicanos nos Estados Unidos, como as recentes reviravoltas na Índia ou os debates portugueses sobre a crise, mostram claros paralelos com as aventuras de Syme. Em todos estes casos, inúmeras pessoas acham-se alvos de conspirações grandiosas, acusando outros que, afinal, são exactamente iguais a si.
O caso Syriza é especial porque, devido ao sucesso eleitoral por que tanto lutou, todos os véus caíram. Os ministros, que há meses eram contestatários românticos sem responsabilidade, encontram-se face a face com um dos mais ingovernáveis países da Europa. Durante umas semanas ainda poderão jogar a desculpa da maldade comunitária mas, se não se demitirem para regressar ao conforto da crítica inconsciente, terão mesmo de acabar por enfrentar os problemas nacionais e construir, lenta e cuidadosamente, caminhos de solução. A retórica incendiária, tão eficaz nas eleições, pouco ou nada ajuda a melhorar a Grécia.
Pior, neste caso como em tantos outros, encontra-se também o inverso da novela. Em vez de termos terroristas que afinal são polícias disfarçados, o Syriza constatará que muitos dos seus eleitores são culpados de defender benesses e privilégios insustentáveis que, afinal, são a verdadeira causa da crise. Nessa altura entenderão, como perante a personagem do terrível Domingo de Chesterton, que o seu verdadeiro inimigo é a simples aritmética.
Repudiar a dívida, a resposta preferida dos extremistas de todas as nacionalidades, nada contribui para eliminar a máquina que criara anteriormente essa carga. Abandonar a redução de despesas e aumentar impostos, que repudiavam tão vigorosamente como austeridade, implica ver a dívida regressar ao níveis de antes do repúdio, com a agravante de que esse repúdio terá fechado as portas de muitos credores respeitáveis e aumentado os juros dos demais.
O verdadeiro problema da Grécia, como aliás de Portugal, é construir um Estado que se consiga sustentar sem recorrer a estrangeiros. Estes, que há décadas sucessivamente canalizam milhões para os países, começam finalmente a perder a paciência. Porque a crise de 2015 não é a primeira, nem a décima vez que a Grécia viola os acordos, pedindo nova ajuda para finalmente resolver a situação, sem de facto nunca chegar a fazê-lo.
Esta vez será diferente? O Syriza tem a enorme vantagem de apresentar caras e ideias novas para enfrentar o velho problema. Assim se deixe de poesias e encare com seriedade o drama grego.
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