Mitologia grega
JOÃO CÉSAR DAS NEVES
DN 2015.02.11
Os antigos gregos acreditavam que no topo nebuloso do monte Olimpo os deuses controlavam sol e ventos, colheitas e comércio, mar e vulcões. Aprendemos depois que essas coisas afinal resultam de elementos bastante mais próximos e naturais. Isto torna irónico que a generalidade das conversas sobre a actual crise, grega ou portuguesa, retome as velhas lendas, atribuindo acontecimentos e males a alguns poderosos e ignorando as forças sociais e económicas de fundo.
Espanta a quantidade de opiniões que tomam mesmo Merkel ou Cavaco, Rajoy ou Passos Coelho como pessoal e voluntariamente responsáveis pela recessão, pelo desemprego e pela pobreza. Por isso lhes têm tanta raiva, vendo-os sentados no trono, quais Zeus no palácio etéreo, afiando os raios que lançarão sobre a pobre humanidade. Inversamente, Alexis Tsipras surge agora como o titã Prometeu, desafiando as forças do panteão e miraculosamente libertando o país, qual deus ex machina.
Não se deve subestimar a influência dos dirigentes e todos conhecemos políticas desastrosas, como Chávez na pobre Venezuela ou o desespero de Putin arruinando Rússia e vizinhos. Mas a vida de milhões de pessoas deve muito mais às decisões desses milhões do que às birras ou aos delírios de alguns, por poderosos que pareçam. A verdade é, pelo contrário, que são os líderes que esbracejam para se manterem à tona das brutais enxurradas e remoinhos sociais. Até os tiranos pouco mais são do que rostos de um movimento muito largo e profundo. Os falhanços das primaveras árabes mostram como Mubarak, Kadhafi e quejandos constituíam afinal encarnações de forças que lhes sobreviveram.
Assim não faz qualquer sentido explicar problemas vastos e dramáticos por caprichos, manias ou erros individuais. Alguém razoável acredita que haja uma enigmática raiva teutónica a reeditar um holocausto na Grécia? Ou que a determinante fundamental da posição alemã sobre o euro advenha ainda da velha hiperinflação de 1921-24? Será lógico tomar Passos Coelho tão obediente às ordens da troika que arrisque destruir não só o país mas o seu futuro político? Ou que Cavaco Silva tenha sofrido da mesma cegueira há 30 anos para, sob misteriosas ordens externas, desmantelar agricultura, pescas e indústria? Estes raciocínios, comuns e persistentes, devem mais aos mitos da Odisseia e d"Os Lusíadas que à realidade que comentam.
O que espanta nessas análises é a total omissão das forças sociais, aparelhos produtivos, interesses corporativos, dinâmicas culturais e comunitárias. Isto, além de tolice evidente, até viola o espírito democrático de todos e a orientação socialista de muitos dos analistas. Se preferem justificações individuais e ocasionais para os amplos e profundos problemas e desenvolvimentos nacionais e mundiais, abandonam na prática as doutrinas que dizem sustentar.
A simples inspecção da situação mostra a inanidade dos raciocínios. O problema económico e financeiro grego resulta, antes de mais, de uma sociedade disfuncional há décadas. Isso não muda com a eleição do Syriza. Com Tsipras, como com o Samaras, a Grécia precisa de profundas reformas que afinal são parecidas com aquelas que a troika tem sugerido, por muitos sofrimentos que causem. Negar isto é óbvia tolice.
A relutância europeia no perdão da dívida grega não resulta de má vontade, mas dos enormes custos dessa opção. Ela é provavelmente inevitável, mas nunca será um almoço grátis, com brutais consequências nos futuros custos do crédito helénico e, por tabela, no dos parceiros, como na vida de milhões de aforradores por toda a Europa. É só por isso que os países, como Portugal, fazem tudo para evitar tal caminho. É interesse próprio, não obediência.
A frescura e a legitimidade da nova liderança grega são activos preciosos, que todos devemos apoiar, não apenas para bem da martirizada Grécia, mas de toda a Europa. Mas a solução exige um pragmatismo anti-romântico, que, aliás, estas primeiras semanas têm mostrado nesse governo, alegadamente extremista. Insistir em soluções radicais e explicações mitológicas, como tantos admiradores e clones, só alimenta futuras desilusões, como vimos em Obama, o anterior Prometeu dos idealistas, agora bastante decaído.
Em qualquer caso, a ingenuidade das recentes discussões confirma que, após milénios de civilização, os velhos mitos persistem no nosso imaginário. Essa mesma civilização devia lembrar--nos que, como Cassio diz ao amigo na peça de Shakespeare, "a culpa, caro Brutus, não está nas nossas estrelas mas em nós próprios" (Julius Caesar I, ii, 140).
Os antigos gregos acreditavam que no topo nebuloso do monte Olimpo os deuses controlavam sol e ventos, colheitas e comércio, mar e vulcões. Aprendemos depois que essas coisas afinal resultam de elementos bastante mais próximos e naturais. Isto torna irónico que a generalidade das conversas sobre a actual crise, grega ou portuguesa, retome as velhas lendas, atribuindo acontecimentos e males a alguns poderosos e ignorando as forças sociais e económicas de fundo.
Espanta a quantidade de opiniões que tomam mesmo Merkel ou Cavaco, Rajoy ou Passos Coelho como pessoal e voluntariamente responsáveis pela recessão, pelo desemprego e pela pobreza. Por isso lhes têm tanta raiva, vendo-os sentados no trono, quais Zeus no palácio etéreo, afiando os raios que lançarão sobre a pobre humanidade. Inversamente, Alexis Tsipras surge agora como o titã Prometeu, desafiando as forças do panteão e miraculosamente libertando o país, qual deus ex machina.
Não se deve subestimar a influência dos dirigentes e todos conhecemos políticas desastrosas, como Chávez na pobre Venezuela ou o desespero de Putin arruinando Rússia e vizinhos. Mas a vida de milhões de pessoas deve muito mais às decisões desses milhões do que às birras ou aos delírios de alguns, por poderosos que pareçam. A verdade é, pelo contrário, que são os líderes que esbracejam para se manterem à tona das brutais enxurradas e remoinhos sociais. Até os tiranos pouco mais são do que rostos de um movimento muito largo e profundo. Os falhanços das primaveras árabes mostram como Mubarak, Kadhafi e quejandos constituíam afinal encarnações de forças que lhes sobreviveram.
Assim não faz qualquer sentido explicar problemas vastos e dramáticos por caprichos, manias ou erros individuais. Alguém razoável acredita que haja uma enigmática raiva teutónica a reeditar um holocausto na Grécia? Ou que a determinante fundamental da posição alemã sobre o euro advenha ainda da velha hiperinflação de 1921-24? Será lógico tomar Passos Coelho tão obediente às ordens da troika que arrisque destruir não só o país mas o seu futuro político? Ou que Cavaco Silva tenha sofrido da mesma cegueira há 30 anos para, sob misteriosas ordens externas, desmantelar agricultura, pescas e indústria? Estes raciocínios, comuns e persistentes, devem mais aos mitos da Odisseia e d"Os Lusíadas que à realidade que comentam.
O que espanta nessas análises é a total omissão das forças sociais, aparelhos produtivos, interesses corporativos, dinâmicas culturais e comunitárias. Isto, além de tolice evidente, até viola o espírito democrático de todos e a orientação socialista de muitos dos analistas. Se preferem justificações individuais e ocasionais para os amplos e profundos problemas e desenvolvimentos nacionais e mundiais, abandonam na prática as doutrinas que dizem sustentar.
A simples inspecção da situação mostra a inanidade dos raciocínios. O problema económico e financeiro grego resulta, antes de mais, de uma sociedade disfuncional há décadas. Isso não muda com a eleição do Syriza. Com Tsipras, como com o Samaras, a Grécia precisa de profundas reformas que afinal são parecidas com aquelas que a troika tem sugerido, por muitos sofrimentos que causem. Negar isto é óbvia tolice.
A relutância europeia no perdão da dívida grega não resulta de má vontade, mas dos enormes custos dessa opção. Ela é provavelmente inevitável, mas nunca será um almoço grátis, com brutais consequências nos futuros custos do crédito helénico e, por tabela, no dos parceiros, como na vida de milhões de aforradores por toda a Europa. É só por isso que os países, como Portugal, fazem tudo para evitar tal caminho. É interesse próprio, não obediência.
A frescura e a legitimidade da nova liderança grega são activos preciosos, que todos devemos apoiar, não apenas para bem da martirizada Grécia, mas de toda a Europa. Mas a solução exige um pragmatismo anti-romântico, que, aliás, estas primeiras semanas têm mostrado nesse governo, alegadamente extremista. Insistir em soluções radicais e explicações mitológicas, como tantos admiradores e clones, só alimenta futuras desilusões, como vimos em Obama, o anterior Prometeu dos idealistas, agora bastante decaído.
Em qualquer caso, a ingenuidade das recentes discussões confirma que, após milénios de civilização, os velhos mitos persistem no nosso imaginário. Essa mesma civilização devia lembrar--nos que, como Cassio diz ao amigo na peça de Shakespeare, "a culpa, caro Brutus, não está nas nossas estrelas mas em nós próprios" (Julius Caesar I, ii, 140).
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