Filhos e enteados

Um perdão como aquele que agora a Câmara de Lisboa se propõe conceder ao Benfica torna-se um insulto a todos aqueles que ao mesmo município pagaram o que tinham de pagar.

Não tenho nada contra o Benfica nem contra qualquer clube de futebol, excepção feita a um das minhas imediações que insiste aos domingos em animar as redondezas com uma animação sonora que deve ter brotado da cabeça de algum sádico. Sei que é estranhíssimo dizê-lo e ainda mais escrevê-lo, mas se o futebol desaparecesse não lhe daria pela falta porque vivo em quase total alheamento do que por ali sucede. Mas, em abono da verdade, devo acrescentar que, se acaso pergunto quem está a ganhar e se dá o caso de o Benfica estar em campo, prefiro ouvir que o Benfica está a ganhar e, como sou espírito de contradição, neste tempo de treinadores que se vestem como os empregados bancários, sinto uma certa fraqueza pelo estilo de Jorge Jesus. E acaba aqui a minha declaração de (pouco) interesse pelo futebol.
O que pelo contrário me interessa muito é o tratamento fiscal muito favorável que o Estado português, através dos seus sucessivos governos e das suas autarquias, tem dado aos clubes de futebol. O perdão fiscal agora concedido ao Benfica pela Câmara Municipal de Lisboa levanta-me as maiores reservas, tanto mais que ele acontece num momento em que os cidadãos portugueses vivem sob uma tremendíssima carga fiscal. Nada lhes é perdoado. Quanto aos munícipes lisboetas creio que só andar a pé pela cidade não lhes é ainda taxado, como bem se percebe lendo as 22 páginas do Regulamento Geral de Taxas, Preços e outras receitas municipais, mais as três páginas dos Tarifários do Serviço de Saneamento e Águas Residuais Urbanas que também integra o incontornável Tarifário do Serviço de Gestão de Resíduos Urbanos , a inevitável Tabela de Taxas Municipais para 2015 (13 páginas) e, por fim, a extensa Tabela de Preços e Outras Receitas Municipais 2013 (25 páginas). E não, não estou enganada, estes documentos não se anulam entre si. Pelo contrário, cada um deles tem sempre umas taxas que os outros não contemplam.
Como é óbvio nem o frenesi fiscal do município e muito menos o tratamento fiscal light para com os clubes de futebol nasceram com António Costa. Mas os tempos mudaram. Em 2015 vivemos sob uma carga insuportável de impostos. Cada vez somos menos cidadãos e mais contribuintes. A obsessão com a cobrança de impostos leva a que o Governo (graças a Deus o mais liberal de sempre. O que seria se não fosse), que adia tanta coisa para um momento financeiramente mais adequado, não se tenha esquecido de criar uma carreira especial para os técnicos do Ministério das Finanças. Cada um de nós é tratado pelo seu Estado como um provável infractor fiscal. A nível municipal ainda recentemente a autarquia de Lisboa entendeu por bem taxar o simples facto de se aterrar ou desembarcar em Lisboa. Ora neste quadro parece-me injustificável avançar com um perdão fiscal (a que obviamente se seguirá, por parte dos outros clubes, a reivindicação de tratamento similar) para um clube a quem não faltam receitas, muito menos sócios, equipamentos e meios.
Os clubes de futebol têm sido alvo ao longo de décadas de um tratamento fiscal muito favorável: perdões fiscais, prescrições e fecho de processos, adiamento de pagamentos, regularizações especiais, renegociações de dívidas, aprovação de pagamento em prestações de dívidas que os clubes se tinham comprometido pagar a pronto… E não raras vezes, quando se supõe que todo este tratamento tão tolerante e solidário com os clubes de futebol levará a que estes arrepiem caminho, eis que se descobrem novas dívidas… Depois quando as coisas ficam outra vez difíceis fazem-se umas declarações espectaculares, acusa-se meio mundo e ameaça-se com a fúria e a mística da massa associativa. Qualquer semelhança com a estratégia dos actuais governantes gregos não é certamente coincidência: os chamados partidos anti-sistema estão a trazer para a política o estilo verbal e a atitude entre o displicente, o arrogante e o insultuoso que muitos dirigentes desportivos e suas entourages têm adoptado para não serem confrontados com os seus erros e desmandos.
Que o Benfica tenha construído, segundo revela o Público, a partir de 2004 (note-se que foi em 2004, no meio de Lisboa, não foi no Algarve dos anos 80, nem na Brandoa dos anos anos 70 do século passado), sem respeitar o alvará de loteamento, dois espaços comerciais, um equipamento desportivo, um balneário, duas bilheteiras e o edifício que alberga as piscinas, o pavilhão e o museu é por si mesmo espantoso. Tão espantoso que se aguardam esclarecimentos dos presidentes da CML durante esse período: Santana Lopes, Carmona Rodrigues e António Costa deverão explicar como foi isto possível.
Neste contexto e com este historial dos clubes de futebol um perdão como aquele que agora a CML se propõe conceder ao Benfica torna-se um insulto a todos aqueles que ao mesmo município pagaram o que tinham de pagar. Mas não só. Aqueles que viram recusados os seus pedidos de construção, alteração ou ampliação têm fortes razões para concluir que andaram a fazer figura de parvos.

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