A suprema rebeldia

JOÃO CÉSAR DAS NEVES
DN 2012-05-28
Nesta triste crise existem alguns casos patuscos e divertidos. Um dos mais hilariantes foi a reacção da imprensa ao novo ministro das Finanças, que ainda não parou de evoluir ao fim de quase um ano de relação ambígua.
O primeiro momento foi de surpresa. O professor Vítor Gaspar não constava em nenhuma das longas listas de candidatos, tão demoradamente elaboradas e comentadas durante semanas. Isso não chega para criar espanto jornalístico, pois é comum os novos ministros serem desconhecidos. Só que isso costuma acontecer por mediocridade ou apagamento. Neste caso o nome tinha todas as características adequadas: vasta e profunda formação técnico-científica, larga experiência governamental e administrativa, forte curriculum internacional. De qualquer ponto de vista, parecia a solução ideal, em que nenhum dos especialistas tinha pensado. Era desconcertante!
O pior foi quando o professor abriu a boca. Foi logo evidente que ele não iria obedecer às regras mediáticas há décadas ditadas pelo jornalismo. Exigência de pontualidade, estilo pausado e meticuloso, intransigente linguagem técnica, tudo violava os princípios elementares da comunicação social, a que todos os políticos obedecem cegamente. À primeira podia ser ignorância, à segunda deslize, mas a partir da terceira a conclusão era inegável: havia um ministro com ideias próprias.
Os espantados jornalistas não sabiam como classificá-lo. Autista? Pedante? Retardado? Brincalhão? Todas as teses aderiam mal ao curriculum. Então espalhou-se uma pergunta feita a qualquer um que tivesse conhecimento mínimo da personagem: Vítor Gaspar tem sentido de humor? Quando os amigos confirmavam que ele era, não só muito inteligente com vasta experiência nas Finanças, mas divertido e irónico, a confusão explodia. Dado não ser tolo ou distraído, tinha de ser opção pessoal de não atender às regras totalitárias do discurso mediático. Como é que alguém na sua posição se atrevia a desafiar as imposições jornalísticas?
Já se andava há largas semanas nisto quando surgiu um elemento ainda mais surpreendente. Gaspar era primo direito do professor Francisco Louçã, outro académico fortemente envolvido na política. A situação era insólita mas não inédita, pois existem muitos casos de familiares com orientações divergentes. Mas surpreende que ninguém tenha meditado no contraste dos dois estilos de rebeldia.
A atitude do ministro das Finanças perante a comunicação social só pode ser considerada subversiva. Há décadas que todos os políticos aprendem a seguir linhas bem definidas nas relações com a imprensa. Existem mesmo cursos e ensaios para os mais limitados. Agora aparecia um responsável que se atrevia a fazer à sua maneira, sem ceder à formalidade.
Rebeldia é a própria imagem de marca do seu primo, há muitos anos líder dos radicais descontentes. Só que a insubordinação do Bloco de Esquerda é do género confortável. Louçã desafia as regras, mas perante o aplauso generalizado e fazendo as delícias da comunicação social. Afinal são raros os casos em que os seus atrevimentos lhe tenham trazido amargos de boca, num tempo que apoia a heterodoxia e acarinha a indisciplina. Tudo somado, arrisca muito mais o primo ministro, quando defende medidas duras e necessárias de forma serena, pausada e pouco mediática, do que o primo coordenador da Comissão Política com as suas propostas extremistas e superficiais. É caso para perguntar qual dos dois é realmente mais rebelde.
Após meses de governação já passou a surpresa, e todos se foram habituando ao novo estilo ministerial. Chegámos à fase mais hilariante: de vez em quando um comentador põe a sua atitude mais pomposa para afirmar gravemente que a pose de rigor e seriedade do ministro foi seriamente beliscada por uma qualquer decisão ou afirmação. No fundo, isto tem muito de orgulho ferido, perante um político que parece genuinamente mais interessado na substância que na forma, mais respeitador da realidade que da imagem, mais centrado no país que na elite. Enfim, a suprema rebeldia.

Comentários

- A suprema rebeldia: ser bem educado, pensar pela sua própria cabeça, agir com o supremo respeito devido aos outros, na causa pública como em casa...

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