A França que é a França

Públcio 2012-05-08 Pedro Lomba

Quem leu os principais jornais europeus de ontem ficou com uma ideia satisfatória das eleições que fizeram de um eterno adjunto, Monsieur Hollande, o novo Presidente de França. Porque a verdade é que mal se falou deste homem que promete ser um "Presidente normal", seja lá o que isso for. Na hora da mudança toda a gente preferiu apontar baterias para o derrotado. "Adeus Sarkozy", "Não voltes", eis alguns títulos. O Presidente que a França não irá lembrar, a página que mais de metade tenciona esquecer, uma figura "postiça", "pindérica", "complexada", "burguesa". 
A adjectivação usada contra Sarkozy ajuda a perceber aquilo que se passou. Neste momento, o Tozé Seguro da França não desfez a imagem de ser um candidato de recurso. Acontece que grande parte dos franceses quis expressar a sua aversão a um só homem: o pequeno, isolado, napoleónico Nicolas Sarkozy.
Não houve na História da V República francesa Presidente tão contestado, tão divisório como Sarkozy e é interessante pensar porquê. Talvez só recuando ao referendo que De Gaulle perdeu em 1969 ou à derrota de Giscard d"Estaing em 1981. Sarkozy tornou-se em cinco anos um político odiado, à esquerda e à direita, o que explica a provisória, mais que provisória, união das esquerdas francesas para o derrubar. Não foram a crise financeira e a austeridade que liquidaram Sarkozy; nem a aliança tácita com Merkel. Na verdade, se fosse por isso o antigo Presidente tinha motivos para ganhar as eleições. Apesar do seu nível crescente de endividamento, a França tem sabido resistir à crise, não teve um ano de recessão e, se não demonstra a robustez económica da Alemanha, isso não se deve a nada que Sarkozy tivesse feito. 
E, no entanto, ele passou de meteoro ao mais impopular dos presidentes. Abandonado pela direita, repudiado pelos inimigos, mesmo os intelectuais esquerdistas que seduziu em 2007 desta vez preferiram o silêncio e a reclusão. Essa solidão do poder que Sarkozy parece personificar acentua ainda mais o seu perfil napoleónico, o típico caso de ascensão e queda fulgurantes. Os franceses são peritos em devorar os seus filhos.
A primeira razão é pessoal. Como Sócrates por cá, Sarkozy representa o típico político gerado na democracia mediática da parlapatice e da vigarice, capaz de dizer e fazer qualquer coisa para se manter no poder. Um novo-rico da política, comodamente encostado a outros novos-ricos.
A segunda razão é ideológica. Nenhum outro presidente francês tentou em vão declarar guerra à herança do Maio de 68. Desde o famoso discurso de 2007, em que Sarkozy verberou os "herdeiros de Maio de 68", a quem acusou de ter imposto "o relativismo intelectual e moral" e o "cinismo na política". Não é impunemente que se toca na religião de 68.
A terceira razão é psicológica. Os franceses estão com medo. Com medo de perderem o que têm. Com medo de deixarem de ser a França. Sarkozy? No fundo "era americano", "nem vinho bebia", "nunca compreendeu a França". E a França, como apregoa Hollande, é a França, uma das sociedades mais assistidas do mundo, uma "liderança moral pelo exemplo e pelo progresso". Aqueles que vêem nas eleições francesas um levantamento das massas a favor de uma nova política europeia estão a esquecer-se deste pânico fugitivo dos franceses. Quando Hollande descer à realidade, é com esse pânico que terá de lidar. Vai ficar entre dois mundos, com um país dividido e um sistema político bloqueado. Custa fazer previsões, mas não esperem por um desenlace.

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