Um problema de confiança
Público, 20091114, José Pacheco Pereira
O que veio já a público explica que quem temia a chamada "asfixia democrática" tinha até mais razão do que imaginava
Compreendo muito bem que haja meus amigos no PS que se interroguem sobre as razões pelas quais "ataco" tantas vezes José Sócrates e que entendam esse ataque como uma questão de animosidade pessoal. Divirjo profundamente das suas políticas, que penso fazem mal ao país, e coloco-o numa espécie de top ten daqueles políticos do PS, do PSD e do CDS que entendo terem, pela sua acção política e governativa, provocado mais danos ao Bem Público, como foi o tandem Guterres-Pina Moura. Mas não são as discordâncias políticas, nem sequer é o julgamento sobre o Governo, que inclui ministros que respeito, que explicam a minha atitude.
O problema com Sócrates é outro: é um problema de desconfiança política profunda. Acrescentei o adjectivo "política" porque o terreno dessa desconfiança é o da própria acção política, não o da pessoa, embora reconheça que é impossível separar de todo os dois níveis, porque a desconfiança implica também com uma questão de carácter. Mas gostaria que, no que eu digo e no que eu faço, a desconfiança ficasse no político e fosse a partir do político que inquinasse o julgamento do carácter e não ao contrário. Não penso que os políticos tenham que ser julgados pelo carácter, o que é sempre uma atitude propícia a um moralismo que acaba por ser arrogante, mas o carácter também importa e em determinadas circunstâncias importa mais. É o caso de José Sócrates.
Essa desconfiança não me surgiu com o aparecimento da personagem na cena pública, cuja acção como secretário de Estado na co-incineração apoiei, nem na sua vitória de 2005. Pelo contrário. Foi encontrando terreno propício quando me foram sendo cada vez mais nítidos o papel da encenação e da pose na sua acção e a crescente disparidade entre os resultados e a propaganda. Mas também não foi por isso. Sócrates era um político típico da sua geração e da sua formação e nisso não era muito diferente de muitos políticos oriundos do interior dos partidos, das "jotas" em particular", feitos pela promiscuidade entre as "fontes" e os jornais, com "biografias do nada", especializados nas técnicas interiores das carreiras partidárias, construindo "imagens" e obcecados pelo "protagonismo". Portugal e a Europa estão cheios deste tipo de políticos, que se entendem bem entre si e movem-se com habilidade pelo actual panorama mediático, as televisões em particular. Nesse estilo, Sócrates era aliás do melhor, porque não se chega onde ele chegou sem qualidades, muito trabalho, determinação e - e isto é uma questão-chave - sem um grupo. No aparelho sobe-se sempre em grupo, e o de Sócrates anda à sua volta em tudo o que é complicação passada e presente. Mas, mesmo assim, nada disto chegava para me mover contra Sócrates com a intransigência que, reconheço, tenho.
O clic, chamemos-lhe assim, foi, de facto, a primeira "história", a do curso e a do diploma. Nada daquilo seria muito relevante, se fosse apenas uma certa ligeireza associada à pose, e um curso mais ou menos artificial, que não foi apenas o dele, mas o de muitos da sua geração que apareceram "formados" em escolas privadas pouco exigentes e facilitadoras. Confrontado com o facto de usar um título académico que não possuía, Sócrates podia ter acabado com a questão num instante, dizendo que partilhava a reivindicação dos seus colegas de considerar que o seu curso era de "engenheiro", ou admitindo que não fora muito rigoroso. Toda a gente passaria em frente e não haveria danos.
Mas ele insistiu que estava tudo bem, e não só que estava bem como tudo era exemplar. E esta atitude, acompanhada por algo que acompanha sempre Sócrates, que é uma enorme e agressiva pressão sobre todos os que não lhe são subservientes - e como são poucos nota-se mais -, levou-me a olhar com outros olhos para o que aparecia e para documentos particularmente bizarros como o currículo emendado existente na Assembleia. Fiquei convicto de que ele era capaz de fazer muita coisa que não devia, por seu próprio interesse, e como se trata de um homem poderoso, isso preocupa-me.
A partir daí não há pedra em que não se dê um pontapé, casinhas, processos na área do ambiente quando ele foi secretário de Estado ou ministro, Freeport, negócios ligados ao controlo da comunicação social, Face Oculta, em que Sócrates não apareça. Pode-se dizer que isso é perseguição, como há quem no PS diga. Mas não é, o problema é que Sócrates aparece sempre lá, perto ou longe, com mais ou menos responsabilidades, e aparece porque está lá. Ele, a família, os seus amigos do PS, as pessoas que escolheu, as áreas onde governou e governa. E, quando ele aparece, nada nunca se esclarece cabalmente. Nem na justiça (e isso é uma arma de dois bicos, porque também o prejudica), nem na parte da política que exige transparência. Por isso, a minha desconfiança original não tem conhecido a não ser um crescendo, porque encontra um padrão e não "casos". E penso, posso estar enganado, mas penso, que essa desconfiança é puramente racional.
O que está a acontecer com o seu envolvimento no caso Face Oculta, e isto para usar o termo exacto "envolvimento" e não "culpa", é mais uma pedra em que, quando se lhe dá um pontapé, aparece Sócrates. Ou dito de outra maneira, cada cavadela sua minhoca, numa terra que, pelos vistos, é fértil nas ditas porque algum adubo há-de ter. Esclareço já que sou contra a violação do segredo de justiça, e, como não sou jornalista, desejo apenas que os jornalistas sejam especialmente criteriosos e restritivos na utilização de documentação oriunda da violação desse segredo. Ou seja, que sejam muito rigorosos no julgamento do interesse público daquilo que publicam e dos direitos conflituais que colocam em causa. Não digo isto apenas agora, já o disse na questão da Casa Pia, talvez o único caso em que houve momentos de "justicialismo" na investigação criminal.
Mas, uma vez publicada a informação, admitindo que ela é verdadeira, não se pode evitar que nos pronunciemos sobre o "escândalo público" que ela suscita, nem sobre os factos que ela revela. E isto é válido tanto para José Sócrates, em que há uma verdadeira barragem, quase chantagem, para que não se discuta o conteúdo do que vem a público, como para António Preto, em que parece que ninguém repara sequer que o que se esteve a discutir nestes últimos anos foram escutas publicadas em violação do segredo de justiça, em que aparecia a história da "mala". Não pode haver filhos e enteados, com critérios diferentes.
E o que se sabe, sem ter sido desmentido, sendo até confirmado da habitual forma retorcida pelo primeiro-ministro, é que José Sócrates mentiu ao Parlamento sobre o seu conhecimento e eventual papel na tentativa de compra pela PT de parte da TVI. Esta não é uma matéria secundária, mas releva das relações institucionais entre órgãos de soberania. E quando digo que ele próprio já confirmou de forma retorcida, foi por o ver começar a fazer uma distinção, demasiado útil, entre conhecer e ter sido "oficialmente informado", que se percebe ir ser a escapadela que vai usar. E é isso que me faz desconfiar e muito, porque o que José Sócrates disse ao Parlamento e aos jornalistas nessa ocasião foi que "não estou sequer informado disso" quando se tratava de saber que grau de envolvimento tinha ele próprio e o Governo no processo. E neste caso, saber a verdade é crucial porque envolve algo de que este Governo tem sempre negado: a interferência a partir do poder na comunicação social. Pelos vistos, o que veio já a público explica que quem temia a chamada "asfixia democrática" tinha até mais razão do que imaginava.
É por isso que desconfio de Sócrates. Vale o que vale, mas para o meu julgamento vale muito. E as razões pelas quais desconfio fazem-me considerar que existe perigosidade na sua actuação para a democracia e para Portugal. Historiador
Comentários