Portugal "irá sobrevivendo"? Claro, não tem alternativa...
Público, 20091127 José Manuel
O défice, a dívida, o desemprego, os juízes, os poderosos desesperam-nos. Vá lá sabermos que os "devoristas" não são eternos
Com aquela candura própria de quem está a dizer o óbvio, o governador do Banco de Portugal anunciou o inevitável: não se registando uma forte descida das despesas públicas, os impostos vão subir até 2013. Ora, como ninguém está a ver quem, na actual conjuntura política, económica e social, vai cortar despesas, ou se aumentam mesmo os impostos ou se deixa crescer ainda mais o défice e a dívida. Para o país é como escolher entre ficar na frigideira ou saltar para o lume, mas surge como uma fatalidade face ao que sabemos sobre o estado da nossa economia.
E que sabemos nós? Primeiro, que quando sairmos da crise vamos crescer de forma anémica, o que significa que nem as receitas dos impostos aumentarão depressa, nem diminuirá o número de desempregados, nem haverá mais riqueza para redistribuir. Nenhum organismo internacional (FMI, OCDE, Comissão Europeia...) prevê um cenário diferente deste, e por isso todos dizem que o défice público, que este ano se situará nos oito por cento (fora o que está oculto), não descerá nos próximos anos.
Depois, que temos uma dívida pública galopante - mais 25 pontos percentuais em três anos - e uma dívida externa asfixiante. Ninguém parece muito preocupado com isso, e a receita das "obras públicas", que uma "esquerda" cega aplaude em coro com os empresários do sector, só vai agravar a situação, ao mesmo tempo que seca o crédito bancário de que necessita o tecido produtivo que cria realmente empregos.
Por fim, o sistema político e partidário está a esfarelar-se, sobretudo no que respeita às duas forças que têm governado o país: o maior partido da oposição, o PSD, está esfrangalhado, e o do Governo vive entre a apatia e o susto, conforme tropeça nos "casos" que atingem Sócrates. Em redor tudo o resto merece cada vez menos respeito, sobretudo o sistema de Justiça, que à conhecida lentidão e ineficácia acrescentou agora a suspeita de falta de independência e culto da opacidade.
Não há novidades neste retrato cru. Muitos o têm feito, poucos o conseguiram discutir. O que se compreende, pois passamos o tempo a discutir as árvores sem nunca termos ideia da floresta. Isto é, passamos a vida nos detalhes, a iludir o essencial.
Basta notar como, por exemplo, de repente o principal problema do sistema judicial passou a ser segredo de Justiça. Quando importava saber se existiu e existe cumplicidade política entre um banqueiro e o primeiro-ministro, com reflexos tanto na distinção entre empresários amigos e não-amigos como no condicionamento da liberdade de informação, gastam-se dias a saber o que fez ou não fez um desconhecido juiz de Aveiro. Da mesma que se apreciaria que o PSD nos explicasse como governaria diferente, 90 por cento do tempo de antena que tem é consumido com as intrigas e as especulações sobre quem dominará essa entidade obscura e mítica que é o "aparelho do partido".
Mais: no momento em que o Governo devia estar a explicar o segundo orçamento rectificativo e, sobretudo, a dizer como porá ordem numas contas públicas que entraram em total derrapagem com o OE 2009, houve quem se entretivesse a discutir a semântica da proposta de lei, isto é, a saber se o orçamento era rectificativo ou "redistributivo".
Os exemplos podiam multiplicar-se, mas esta insanidade só é tolerada porque os portugueses empregados (os desempregados é um outro mundo) têm temporariamente mais dinheiro nos bolsos, já parecem ter esquecido o susto da crise e dão sinais de estarem a regressar a um consumo imediatista e suicidário (o indicador coincidente do consumo privado, que estava negativo desde Dezembro de 2008, regressou a valores positivos em Setembro e Outubro). Se o "zé-povinho" até voltou aos stands de automóveis, por que há-de incomodar-se com o que o Estado está a gastar? Só mesmo o Medina Carreira é que se apoquenta com isso...
E os rituais cumprem-se. Já há luzes de Natal (pindéricas, reconheça-se) e promessas de mais Magalhães, pelo que nada ou quase nada, para além da acidez crescente dos comentários sobre as mais recentes tropelias dos amigos do "engenheiro", indica a proximidade do muro em que vamos esbarrar. Será que só o descobriremos quando chegarem os impostos do dr. Constâncio? Ou o primeiro choque vai ser já em Janeiro, quando tivermos de realizar mais descontos por causa de um matreiro Código Contributivo? Tanto faz: dormentes ou em sobressalto, nada indica que possamos escapar à pobreza relativa e acabrunhante. Uma pobreza tão antiga que serve para explicar tudo, desde a endémica corrupção (que cresce) à secular dependência do Estado (que esmaga).
Como noutros períodos da nossa história, ouvem-se já vozes dos que sentem o país de novo encurralado. Um país sem saída política como estava nos anos finais do marcelismo. Ou durante a longa decadência final da monarquia liberal, naqueles anos em que se pagava o preço do voluntarismo de Fontes Pereira da Melo, um político para quem, segundo a biógrafa Maria Filomena Mónica, "a dívida era algo com que era preciso aprender a viver". Mais: se ele, "Fontes, pedia dinheiro emprestado, era para que o país pudesse sair da miséria". O que, obviamente, não aconteceu na época, nem está a acontecer agora.
Ainda não se vai tão longe como, pouco tempo depois de Fontes morrer, chegou a ir Eça de Queirós quando (citado por Rui Ramos na recente História de Portugal) desabafou com um amigo: "Eu creio que Portugal acabou. Só o escrever isto faz vir lágrimas aos olhos - mas para mim é certo que a desaparição do reino de Portugal há-de ser a grande tragédia do fim do século". Na época tudo parecia em causa, das finanças ao regime constitucional, o que nos aproxima dos dias de hoje - porque o resto, a soberania que também apoquentava Eça, essa já a transferimos, em boa parte, para longe.
Mas não desesperemos: se então sobrevivemos, também agora cá estaremos, até porque vivemos aqui, neste canto da Europa - e da UE. E porque o tempo dos "devoristas" nunca é eterno. Jornalista
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