Onde isso vai!
Maria José Nogueira Pinto DN19 Novembro 2009
Nestes dias do vigésimo aniversário do derrubar do Muro de Berlim e do princípio do fim do comunismo internacional, o Presidente Obama visita a República Popular da China. Não sei como a esquerda radical e utópica, que tanto embandeirou com a sua eleição, reagirá a esta visita, que tem sido marcada pelo cuidado de não ofender os anfitriões, de não abordar temas que para eles sejam incómodos ou delicados como o Tibete ou os direitos humanos, de adaptar-se às experiências da tão detestável política realista.
O "odioso" Richard Nixon, "tricky Dick", o homem que abriu dramaticamente as relações com Mao Tsé-tung e a China de Pequim, não fez outra coisa. Como no fundo não fizeram outra coisa os sucessivos presidentes norte-americanos, em diálogo com o grande e futuro rival asiático, parceiro económico e financeiro decisivo, pedra de equilíbrio mundial. Um diálogo em que sacrificaram os princípios aos interesses.
Também neste vinténio do fim do simbólico muro da opressão, não se pode dizer que as expectativas, então abertas de maior liberdade, democraticidade e respeito pelos direitos humanos, tenham progredido assim tanto.
Na verdade, a democracia está onde está e onde sempre esteve: no mundo euro-americano - agora decididamente estendido à antiga Europa do Pacto de Varsóvia. Isto é Américas e Europa. A Rússia é uma democracia musculada, no mundo árabe e no Magrebe dominam formas autoritárias ou autocráticas. Como na África. A Ásia está dividida e partilhada com a Índia e a China, os países maiores, representando esses pólos, o democrático e o monopartidário.
Mas volto a Obama e à esquerda que tão entusiasticamente celebrou o seu aparecimento e a sua vitória. Afinal, no poder, ele segue as mesmas regras da prioridade dos interesses do Estado e da economia norte-americana; não parte, qual cruzado libertador, contra o regime chinês, vai tratando de Guantánamo com luvas e as agências americanas têm, pelo que respeita ao terrorismo e contraterrorismo, muito mais continuidade que mudança.
Naturalmente tem de ser mesmo assim. Mas o que irrita é esta eterna posição de "superioridade moral" que a esquerda - e os seus políticos, os seus jornalistas, os seus intelectuais - sustenta com arrogância, cada vez que toma conta duma causa e duma personalidade.
Como se lhes coubesse, ipso facto, o monopólio das boas ideias e das boas causas, com se fossem eticamente mais idóneos que os seus adversários. E estes não passassem de frios calculistas e oportunistas, defensores de interesses obscuros, de privilégios de classe ou estatuto.
Esta ideia da superioridade moral da esquerda, das ideias da esquerda e dos homens de esquerda, é um cliché, como outros, instalado por uma antiga barreira de propaganda e preconceito. De que também muitas culpas cabem às direitas, tantas vezes obcecadas em sustentar e defender, de facto, situações de injustiça ou de privilégio. Ou correndo, oportunistas, a fazer a política dos seus inimigos, para "os esvaziarem". Em Portugal sabemos o que isso é e o que isso deu…
Vem também de uma razão histórica: no século XIX, nos primórdios do socialismo, nos tempos heróicos das lutas sindicais pela melhoria de condições de vida dos trabalhadores, surgiam, quer entre os intelectuais e escritores quer entre as próprias classes altas da sociedade, exemplos de coerência entre pensar e agir.
Lordes ingleses e príncipes russos, convertidos aos ideais humanitários e libertários, davam generosamente os seus bens aos seus correligionários pobres ou a obras beneficentes. Eles próprios financiavam projectos generosos, pagando do próprio bolso sonhos utópicos.
Desta memória deve ter ficado a ideia desse extremo idealismo e generosidade associados aos homens de esquerda e aos socialistas. Que, curiosamente, perdurou até aos nossos dias. Onde isso vai!
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