Voto de tripas e coração

Voto de tripas e coração

João César das Neves

DN20090914

Votar é hoje uma actividade normal. No entanto, a lembrança dos tempos heróicos ainda cria um clima de romance e solenidade que envolve todo o processo eleitoral. Assim, a sua verdade pode acabar distorcida por mitos ingénuos. Mas o próprio princípio democrático convida-nos a desafiar tais mitos e repor a verdade.

A grande maioria das pessoas pensa exercer o seu direito de forma consciente, séria, racional. Todos dizem votar com a cabeça. Isso é pouco provável. Primeiro quase ninguém lê os programas eleitorais. Isso acaba por ser sensato, porque a relação entre tais documentos e qualquer futuro programa de Governo, para não falar das políticas praticadas, é mínima. Dos votos à posse haverá tantos compromissos, negociações, cedências e recuos que as promessas de campanha acabam esquecidas. Mas, mesmo que não acabassem, um voto mesmo racional seria difícil, porque a realidade nem sempre encaixa nas lendas que fundam a sociedade democrática.

Por exemplo, será que um Governo de maioria assegura governabilidade? Dos 17 executivos constitucionais, dez tiveram maioria parlamentar, mas desses só três acabaram o mandato. Na nossa democracia, o caso dominante é o dos sete governos maioritários que não terminaram a tarefa. Depois vêm os seis minoritários que também caíram e só no fim os que cumpriram o compromisso, um deles minoritário. Curiosamente, se somarmos os tempos de vigência, estes quatro executivos com êxito governaram um período praticamente igual ao dos 13 instáveis.

Outra grave confusão vem da atitude política dominante. Portugal em geral, e a Esquerda em particular, gostam muito de um sistema estatista, público, governamentalizado. Todos os regimes dos últimos 200 anos - absolutismo, liberalismo, república, salazarismo e democracia - defenderam o poder paternalista na saúde, educação, economia, etc. Mas depois Portugal em geral e a esquerda em particular criticam violentamente a má qualidade daquilo que o Estado realmente faz.

Todos gostam de um Governo influente, mas nunca do Governo que temos. Os que apregoam a urgência de uma política serão os primeiros a atacar essa mesma estratégia quando concretizada. Insultam--se com vigor organismos, sistemas e intervenções que, em teoria, se promovem com paixão. Se o Estado é tão mau como os partidos dizem, por que razão não são todos neoliberais? Porque insistem em sugerir burocracias e políticas que eles mesmos vão achar horríveis na prática? Assim, não admira que os governos caiam.

Se não se pode votar com a cabeça, então vota-se como? Abandonando o mito da escolha cerebral que todos incensam, olhemos a realidade. A maioria vota com o nariz, sempre no mesmo partido. Depois vêm os indecisos e flutuantes, que se consideram mais sofisticados. Esses seguem três hipóteses.

Nas eleições menores, votam com o coração. Europeias e referendos é onde as razões ideológicas e de simpatia prevalecem e a abstenção e partidos pequenos sobem, porque o jogo é a feijões. Mas isso acaba por ser muito negativo porque essas decisões são mesmo influentes e nenhuma eleição é de desprezar. É por isso que o Parlamento Europeu é grotesco e as escolhas referendárias contraditórias.

Não é provável que isto aconteça nas legislativas, onde a escolha é a sério. Aí todos se deixam de análises e doutrinas e votam com o bolso. É a isto que se chama "voto útil", escolhendo não quem governa melhor ou defende a ideologia preferida mas o que menos estragos fará ao interesse particular. Por isso é que desta vez as coisas estão tão tensas e incertas: os eleitores acham que qualquer dos governos plausíveis fará bastante estrago.

Para além destes métodos de voto, só existe mais um. Nas autárquicas fora dos grandes centros, as pessoas não votam com o nariz, a cabeça, o coração ou o bolso, mas com as tripas. Aí as lutas são renhidas e as paixões intensas, pois todos se conhecem e amam ou odeiam com ardor. Por isso é que as autárquicas são as únicas eleições a sério em Portugal, em que a verdadeira democracia ainda tem hipóteses.

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