Arranjar chatices
Helena Matos
Público, 20090910
Em poucos dias um livro sobre o percurso académico de José Sócrates teve, em Portugal, sem cartazes nem entrevistas, mais de oito mil downloads. Esse livro chama-se O Dossier Sócrates e o seu autor, António Balbino Caldeira, descreve no seu blogue, Do Portugal Profundo, como numa grande editora portuguesa passaram a determinado momento de um imenso interesse pelo seu livro para não mais lhe atenderem o telefone. E outras editoras se seguiram com procedimentos bem diversos daqueles que adoptam perante algo que lhes garanta um mínimo de interesse por parte do público. As peripécias editoriais deste livro, tal como doutros num passado recente, são um bom indicador da disponibilidade das empresas e dos cidadãos para aceitarem um maior controlo das suas vidas por parte do Estado. Não me parece provável que as editoras pelas quais passou O Dossier Sócrates tenham recebido algum recado do gabinete do primeiro-ministro desaconselhando a publicação do livro, quanto mais não seja pela prosaica razão de que tal não é necessário: o país é pequeno, os negócios não vão bem, cada vez mais os empresários vivem à sombra da máquina estatal (e na comunicação social das campanhas publicitárias das várias empresas estatais), o crédito, via BCP e CGD, está nas mãos de quem governa. Mais vale perder um bom negócio do que comprometer outros. Em conclusão, ninguém quer 'arranjar chatices'.
Dir-se-á que o livro de António Balbino Caldeira é tão mau que a editora resolveu recuar na sua decisão. Certamente que isso pode acontecer, embora o nível lastimoso do que por aí se edita torne essa hipótese pouco verosímil. Mas o que caracteriza o ambiente malsão do 'não arranjar chatices' é que não só ninguém assume nada como todos procedemos como se nada tivesse acontecido: até ao dia em que escrevo, quarta-feira, 9 de Setembro, o cancelamento da edição de O Dossier Sócrates não foi objecto de qualquer notícia. Compare-se este opaco silêncio com a indignação gerada pela pública e notória decisão de uma cadeia de supermercados de não comercializar nas suas superfícies A Casa dos Budas Ditosos e não se pode deixar de pasmar com tanto silêncio.
Infelizmente este espírito do 'não querer arranjar chatices' além de legitimar o condicionamento de decisões para agradar a quem governa, tem a perversa consequência de transformar aqueles que não se conformam com este malsão estado de coisas em seres amalucados, pois só uma criatura doida e quezilenta é que anda para aí 'à procura de chatices' quando podia levar a vida em bom sossego. Nas ditaduras a coisa é simples: o censor não deixa e já está. Ele fica com o ónus da questão. Nas democracias, as decisões censórias são necessariamente mais subtis. Fazer de conta que não aconteceu nada é uma das estratégias: é cedo para dizer que será esse o destino de O Dossier Sócrates, mas foi esse o percurso de Contos Proibidos, Memória de um PS Desconhecido, de Rui Mateus, ou de vários livros sobre a descolonização. Para consolo das misérias nacionais, temos sempre a possibilidade de recordar as peripécias editoriais experimentadas por um livro de Chris Patten, o último governador britânico de Hong Kong, cujas memórias dessa sua experiência levaram a China a pressionar grupos editoriais da muito livre Grã-Bretanha.
A outra das estratégias censórias, essa comum às ditaduras e às democracias, passa por denegrir quem 'arranja chatices': populismo, ordinarice, crítica destrutiva, pessoa que só chegou àquele cargo por ligações familiares... Pode parecer que estou a falar de Manuela Moura Guedes e do Jornal Nacional em 2009, mas por acaso estou a citar alguns dos epítetos que recaíam sobre o semanário Expresso, em 1975. Este jornalismo deplorável, continuo a referir-me à forma como o Expresso era referido em 1975, valeu-lhe aliás algumas multas e o seu então director estava mais ou menos reduzido à caricatura do 'chiquinho dos Porsches'. Gostamos de acreditar que, passado o PREC, a liberdade de expressão ficou garantida para todo o sempre em Portugal. Como é óbvio, tal não é verdade nem pode ser. A liberdade de expressão implica uma prática quotidiana e sobretudo implica perceber de que lado se está quando o poder, seja ele político, religioso ou económico, interfere com essa liberdade. E nesses casos, em Portugal, a liberdade quase invariavelmente perde e, pior que tudo, perde perante a indiferença geral
A censura é, em Portugal, o que mais parecido existe com o amigo preto dos racistas brancos: ninguém é a favor da censura, não há ninguém que não diga que "a censura é uma coisa inaceitável" e que declare a sua profunda admiração pelo jornalismo de investigação, mas, feita esta declaração inicial, tal como os racistas ressalvam que até têm um amigo que é preto, aqueles que se dizem contra a censura desatam na legitimação daquilo que supostamente condenam: suspensão de um programa, desaparecimento de um livro do mercado ou tentativa de controlo de um jornal. Tudo claro, sempre em nome do bom gosto, da decência e da verdade. Ensaísta
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