Os neo-protestantes
JOÃO CÉSAR DAS NEVES 17.02.2018 DN
Hoje não é costume ver intelectuais zurzir bispos. Essa prática, obrigatória nas elites desde o século XIX, saiu de moda. Por isso surpreende a campanha de censura e zombaria que se abateu sobre o cardeal-patriarca da Lisboa nestes dias. Isto só acontece por o prelado ter tocado num tema que os irreligiosos consideram sagrado.
A atitude da cultura dominante em relação aos cristãos inverteu-se nos anos 1960. Demorou tempo, mas os pensadores oficiais acabaram por aprender que a Igreja não é aquela instituição bafienta, ridícula e moribunda que os seus antecessores sujeitavam ao mais supino ridículo. Debaixo do maior ataque cultural e político da história da humanidade, do sarcasmo maçónico aos gulags marxistas, a Igreja ressuscitou ao terceiro dia, mostrando a solidez, a elevação e a vitalidade que a tornou respeitável. Desde S. João XXIII, a imprensa passou a ignorar as questões religiosas, preferindo o silêncio ao ataque. Excepto quando a Igreja toca nos ídolos adorados pelo laicismo pós-moderno.
O sexo é sagrado. É ainda mais sagrado do que dinheiro, fama, poder e escárnio, os outros deuses supremos do Olimpo contemporâneo. Por isso toda a cultura se revolta quando alguém, para mais líder de um culto alternativo, como é o senhor D. Manuel, parece atrever-se a beliscar os dogmas indiscutíveis da religião dominante. Felizmente os nossos intelectuais são preguiçosos, ignorando a multidão de ensinamentos católicos que desafiam as suas convicções. Se lessem o catecismo, o missal, as homilias e documentos do Papa Francisco, teriam muitas causas de fúria. Mas, numa cultura alimentada por blogues e telejornais, só quando um repórter se lembra de referir uma ideia, em geral mal-entendida, é que se desencadeia a tempestade.
Neste caso foi a "Nota para a receção do capítulo VIII da exortação apostólica Amoris laetitia", assinada a 6 de Fevereiro pelo cardeal-patriarca de Lisboa. Ela cumpre uma função decisiva, lidando com a novidade do documento de Março de 2016. Antes a regra era automática: quem vivesse em situação irregular, por exemplo num casamento não abençoado pela Igreja, devia participar activamente na vida eclesial, mas não podia receber a penitência e a eucaristia. Na referida exortação, o Papa Francisco nota que "é possível que uma pessoa, no meio duma situação objetiva de pecado - mas subjetivamente não seja culpável ou não o seja plenamente -, possa viver na graça de Deus" (AL 305), abrindo a possibilidade de perdão sacramental e comunhão a esses casos particulares, e apenas a esses. Claro que este cenário cria enorme responsabilidade aos confessores, que determinam as situações concretas, e precisam de orientações. A nota define esses termos para a diocese, aliás, citando as várias determinações de Roma e repetindo o ensino estabelecido da Igreja, sem nada de novo. Não se justifica tanto barulho.
Claro que a imprensa não sabe que notas destas estão a ser apresentadas em todas as dioceses do mundo, incluindo as portuguesas. Nem se dá conta da lógica e da necessidade da publicação. Aliás, nem sequer a leu. Reage apenas à manchete que falava de "propor a vida em continência" sexual para os casais recasados. Foi isso que se viu classificado de "proposta ridícula" (Teresa Toldy, DN, 9/Fev.), que "não faz sentido, é contra a natureza das coisas" (Anselmo Borges, idem), "um bocado absurdo ... uma espécie de delírio mental" (Bento Domingues, Expresso, 10/Fevereiro).
Um aspecto curioso é estes inflamados críticos da nota serem intelectuais católicos, praticantes e devotos. Ateus e anticlericais, que em gerações anteriores travavam a luta, hoje mantêm-se à margem, gozando o espectáculo da Igreja dividida. Não nos devemos escandalizar com esta clivagem, normal desde os Actos dos Apóstolos. Ela nasce da uma atitude, a que podemos chamar "protestante", de recusar a autoridade canónica em nome da opinião pessoal, que em geral traduz os ídolos do momento.
A atitude católica é obedecer sempre e apenas a Deus, que se revela da forma que Ele escolheu, o colégio dos Apóstolos e seus sucessores, o Papa e os bispos a Ele unidos. Os protestantes preferem o seu palpite. Isso vê-se com clareza na posição que, acerca deste tema, apresentou o mais eminente dos críticos, frei Bento Domingues. Na entrevista ao Expresso de 10 de Fevereiro, afirma: "É o casal que deve decidir a sua vida íntima. Nenhum padre, nenhum bispo, ninguém se pode intrometer" (p. 8). É caso para perguntar: para que é que queremos padres e bispos senão para nos dizer como nos devemos comportar em todas as coisas, em especial na vida íntima? Claro que cada um decide da sua vida, mas a missão da Igreja é anunciar a Palavra de Deus, guia e orientação dos fiéis.
O senhor cardeal-patriarca de Lisboa, com a qualidade e elevação que todos lhe reconhecem, afirmou com clareza, profundidade e lucidez a doutrina da Igreja sobre o tema. A violência dos críticos teve o grande mérito de a tornar pública e notória.
Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
Comentários