José Manuel Jara: "Dez razões para rejeitar a eutanásia e o suicídio assistido"

JOSÉ MANUEL JARA   SÁBADO  01.02.2017 
O médico psiquiatra, fundador da Associação de Apoio aos doentes depressivos e bipolares, considera que "a chamada morte assistida é um falso direito"

1 – A eutanásia não é uma necessidade social ou assistencial
A concretização de uma lei que permita o Suicídio Assistido (ajudado) ou a Eutanásia (execução da morte a pedido), eufemisticamente englobados pelo termo "morte assistida", não corresponde a uma necessidade social ou assistencial, muito menos médica, e não é em nenhum plano uma prioridade. No nosso país é sem dúvida o desenvolvimento e melhoria dos cuidados paliativos a prioridade assistencial.

2 – A chamada morte assistida é um falso direito
A iniciativa da sua discussão e eventual legalização parte de uma proposição doutrinária de base jurídica, alicerçada num liberalismo que entende defender o direito à morte como um direito "humano". A argumentação é antes de tudo do foro jurídico e não de base médica ou assistencial. A ideologia subjacente tem um fundo niilista e tanatológico dissimulado como libertário.

3 – A Constituição da República Portuguesa consagra o direito à vida como inviolável
A argumentação jurídica para defender a "morte assistida" faz o salto da lei que penaliza esses atos (artigos 153º e 154º do Código Penal), para uma eventual legislação que autoriza precisamente o contrário, mesmo que com algumas restrições. Não seria uma "despenalização da morte assistida" como se pretende na Petição nº 103/XIII, pois a chamada "morte assistida", não existindo, não poderá ser objeto de uma despenalização. Em vez de despenalização seria uma institucionalização. A Constituição da República consagra no artigo 24º o direito à vida como um direito inviolável. Nada consta no texto constitucional de onde se possa inferir com base no direito à autonomia da pessoa de um direito à morte, questão extrema, sensível e melindrosa.

4- A história da eutanásia revela perigos
É errado considerar que a questão da eutanásia é historicamente recente, pois tem antecedentes em doutrinas na eugenia do fim do século XIX. Uma obra "clássica" (1922) de um professor de direito penal alemão (Karl Binding) e de um psiquiatra (Alfred Hoche), defende a eutanásia ativa voluntária para pessoas com doenças terminais em grande sofrimento e também a eutanásia involuntária para deficientes e doentes mentais. A prática da eutanásia na Alemanha Nazi inspira-se nessas teorias, visando a eliminação da "Vidas não dignas de ser vividas" (Operação T-4). O impacto destes factos repercute ainda hoje na Alemanha, impedindo qualquer opção pela eutanásia no país.

Para a história da agora chamada "morte assistida" conferida pela aceitação da "autonomia" para uma "morte digna", há que registar os antecedentes de eugenia e de políticas sociais de racionalização demográfica que levaram aos extremos conhecidos, que hoje são menos patentes mas reais. Os desvios das leis do Benelux, com alargamento do perfil das candidaturas, patologias, idades, aí está a comprová-lo. É o efeito de banalização e desdramatização dos procedimentos gerado pela sua legitimação.

5- Muito poucos países legalizaram a eutanásia e o suicídio assistido
A complexidade que coloca a eutanásia mede-se de imediato pelo facto de apesar do sensacionalismo promovido pelos media desde há muitos anos (para casos singulares chocantes), são muitos poucos os países que adotaram leis de eutanásia e de suicídio assistido: Bélgica (Flandres principalmente), Holanda e Luxemburgo (os três únicos na Europa que autorizam a eutanásia e o suicídio assistido); a Suíça, que autoriza o suicídio assistido de maneira privada; cinco estados dos EUA, mas apenas para o suicídio assistido em doença terminal, e o Canadá, que autoriza o suicídio assistido e a eutanásia apenas para doenças terminais, a partir de 2016. Todos os outros países não têm legislação que legalize estes procedimentos.

6- A valorização da eutanásia é contraditória com uma política adequada de cuidados paliativos
A argumentação que sustenta que a "morte assistida" não é contraditória com os cuidados paliativos refuta-se com alguma facilidade. O terreno é o mesmo, o da assistência em situações de doença grave, com sofrimentos, possivelmente fatal em pouco tempo. Na Inglaterra e na França (Lei Leonetti, 2005), a legislação para os cuidados paliativos e a sua prática são o argumento que contraria a institucionalização da "morte assistida". As associações de técnicos e promotores dos cuidados paliativos opõem-se quase sempre à chamada "morte assistida". A simplificação do desfecho fatal (curto-circuito, bypass ao processo de morte natural) pode mediar atitudes tecnocráticas neoliberais para poupar nas despesas sociais e assistenciais geradas pelos cuidados paliativos. E pode gerar em pessoas sugestionáveis uma vontade de acabar com a vida para deixar de ser um fardo, um peso para os outros. A autonomia da pessoa vista à luz da pessoa jurídica (sujeito abstrato, titular de direitos) subtrai as condicionantes contextuais, éticas, sociais, familiares psicológicas, médicas e psiquiátricas, num ser humano em situação de acentuada fragilidade.

7- Há práticas médicas e assistenciais justas para o fim da vida a não confundir com a eutanásia
Há uma confusão propositada entre procedimentos muito diferentes, utilizada por alguns defensores da eutanásia. Uma coisa é executar a morte de um doente a pedido, outra bem diferente é admitir que a medicina já nada pode ajudar, que a sustentação da vida não se deve prolongar, deixando que sobrevenha a morte natural de alguém que já não existe como ser consciente (impropriamente chamada "eutanásia passiva"). Também não se pode comparar a "morte a pedido" ("medicamente assistida") e a verdadeira assistência médica para atenuar o sofrimento, cuja aplicação pode, em alguns casos, como efeito secundário, abreviar o tempo de vida (impropriamente chamada "eutanásia indireta"). O encarniçamento terapêutico, que se designa "distanásia", corresponde a uma prática assistencial errada, artificial e inadequada, contrária aos princípios da medicina e ao interesse da pessoa assistida. Os progressos nas terapêuticas que atenuam e suprimem a dor tornam também a questão da eutanásia muito menos relevante do que em períodos anteriores.

8 – A "morte assistida" é contrária aos princípios da medicina
Sendo um dos pressupostos o de que a "morte assistida" deverá ser praticada como assistência médica, constata-se desde logo a sua colisão no nosso país com a lei deontológica da medicina portuguesa que a tal se opõe formalmente. Com efeito, muito dificilmente se pode incluir a eutanásia e o suicídio assistido como práticas médicas. Há alguns juristas, como a Dra Inês Godinho e o Prof. Dr. José de Faria Costa, que teorizaram sobre a reformulação do "ato médico", tentando forçar a sua "atualização" para consentir a eutanásia. É assaz curioso que sejam juristas penalistas a fazê-lo. Ficaria penalizada a medicina e despenalizada a morte. De facto, considerar que a avaliação médica prévia ao veredito da sentença que permite auxiliar ou executar a morte do paciente se inscreve na medicina é um tour de force em que naufraga a mais sofisticada retórica de algumas sumidades.

9- A saúde mental é também saúde moral
As questões de saúde mental subjacentes nas condutas suicidárias, o cerne subconsciente ou dissimulado de toda esta problemática, terá de ser objeto de cuidadosa análise. Os fatores que levam ao suicídio são complexos e imbrincados, sendo consensual que os fatores psicopatológicos são da maior relevância. Mas a dimensão social e sociocultural é de grande importância. A legalização da eutanásia e do suicídio assistido é uma promoção do suicídio, não se restringe à população-alvo, pode expandir-se como a "arma" legal que propicia o ato ao "cliente" da morte. Não se deve minimizar a sugestão na vida social, o efeito de epidemia comportamental na sociedade mediática que é a nossa. A prevenção, questão da maior relevância na saúde pública e na medicina, não se coaduna com o liberalismo em que o cidadão é considerado uma mónada numa sociedade anómica, em que reina o individualismo sem fronteiras, e se minimiza a solidariedade humana, base para uma civilidade moralmente saudável.

10- A exceção deve manter-se excecional
Casos extremos e excecionais que possam enquadrar-se numa assumida necessidade de suicídio assistido ou de eutanásia não justificam a sua institucionalização. Evita-se a generalização e pode satisfazer-se essa necessidade através de uma jurisprudência tolerante, caso a caso. É matéria complexa que apenas se enuncia.

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