A liberdade de morrer e o dever de salvar
GRAÇA FRANCO RR 26.02.2018
Hoje o André parece-nos um herói. E foi. Mas fez a coisa mais instintiva e natural. Até ao fim tentou salvar uma vida e só isso já é dar-lhe uma razão acrescida para querer viver. Porque será que ninguém pensa nisto quando se discute o extremo oposto? Quando se defende a eutanásia.
Na semana passada, o André tinha 19 anos e deu literalmente a vida para salvar um desconhecido de 69 que entrara nas águas do Douro ao volante de um automóvel, de forma aparentemente deliberada.
Talvez o condutor tivesse pensado que já não tinha nada a dar ou receber da própria vida. Talvez já tivesse desistido de pensar que a sua vida ainda valia a pena ser vivida. E no momento mais improvável da morte procurada encontrou-se com um desconhecido pronto a dar a vida por ele.
“Sem que nada o fizesse prever”, depois de libertado o condutor do cinto de segurança que o amarrava à morte e de o puxar para a margem”, André já não conseguiu apanhar a corda que os amigos lhe lançavam “abriu os braços e apagou-se” levado pelo rio.
Num salto, outro jovem quis, em vão, ir ainda ao encontro do André, mas só conseguiu abraçar o corpo que o jovem tinha resgatado da morte.
André não queria morrer, queria apenas que o outro que se lançara ao volante nas águas do Douro vivesse também. Antes, com o grupo de amigos na margem já lhe tinha gritado que voltasse, desistindo da morte procurada, mas ele, teimoso, parecia que “cada vez metia mais a cabeça na água”. Foi então que o André não desistiu da vida de quem parecia procurar a morte. Saltou para a água gelada, tirou-lhe o cinto de segurança puxou-o para a margem. A morte já devia andar por ali, porque o levou a ele, André, rio abaixo.
A notícia sobre as buscas do corpo do André não nos conta mais nada da sua história. Não nos diz se ao volante ia alguém em sofrimento insuportável ou em doença terminal, que deixara uma, duas, três cartas a garantir que decidira partir ao encontro da morte naquela noite. Não nos diz se aquele homem desesperado, em vez de preferir ajuda para ser salvo, não buscava, pelo contrário, uma mão que o ajudasse a morrer quanto antes.
A imprensa não nos fala do artigo 24.º da Constituição e do direito inalienável de cada português à vida. Não debate se o André tinha ou não tinha o dever inalienável de tentar salvá-lo. Não nos diz, sequer, se os jovens que testemunhavam a cena podiam ser culpados de crime de omissão de auxílio a alguém em dificuldades e perigo de vida. Não nos diz se o Homem resgatado sequer sobreviveu, ou não, e, caso tenha sobrevivido, agradeceu aos jovens ou os amaldiçoou por não ter conseguido o que queria.
O texto da notícia não nos diz se o André era católico, ortodoxo, muçulmano ou ateu. Não nos diz se no grupo se questionou, nem que fosse por um instante, se havia algum conflito de direitos entre o dever de salvar o aparente suicida e o desejo dele de morrer. O direito daquele homem “livre” a enfiar cada vez mais a cabeça na água, a cada grito de que saísse do automóvel, e voltasse para a margem, conflituava com o dever de evitar a sua morte. Diz-nos o jornal apenas que os miúdos não desistiram de salvar uma vida a um condutor que, à sua vista, enfiara o automóvel nas águas do rio gelado. Diz-nos só que o André foi lá buscá-lo, mesmo quando o viu enfiar cada vez mais a cabeça na água, num gesto de aparente recusa de qualquer auxílio.
Hoje o André parece-nos um herói. E foi. Mas fez a coisa mais instintiva e natural. Até ao fim tentou salvar uma vida e só isso já é dar-lhe uma razão acrescida para querer viver. Porque será que ninguém pensa nisto quando se discute o extremo oposto? Quando se defende a eutanásia.
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