Tempo para ouvir

Inês Teotónio Pereira
ionline 2014.11.08

As crianças dizem tudo o que lhes passa pela cabeça, sem filtro, sem lógica, muitas vezes sem contexto, sem fim e sem principio

Há umas semanas convidaram-me de uma escola para falar sobre este tema a uma plateia composta por dezenas de pais, educadoras e professores. Convidaram-me por simpatia e sem saberem que o meu talento para dar palestras é equivalente ao de António Costa para fazer programas governo ou consultar a meteorologia. Mas fui. O objectivo era dissertar sobre a importância de ouvir os nossos filhos e o tempo que dedicamos a essa tarefa.
Na preparação da dita palestra fiz uma reflexão sobre a minha experiência como ouvinte dos meus estridentes filhos, uma retrospectiva dos meus dias e um balanço da atenção que lhes dedico, na esperança de com isso encontrar alguma coisa para dizer que valesse a pena ser ouvida. Revelou-se uma reflexão penosa. O exercício serviu para constatar que todo o tempo que passo com eles é sobretudo gasto em ordens, tarefas, estudo, organização, urgência e questões inadiáveis. O que sobra é fundamentalmente dedicado ao sofá e a um estado quase vegetativo. Realizei que tenho filhos menos exigentes da minha atenção que ouço menos do que mereciam e que falam menos do que deviam. E concluí que ouvir, ouvir, com toda a atenção e dedicação, só tenho ouvido os gritos do mais novo que enquanto não aprende a falar vai imitando o som de vários tipos de sirenes.
É verdade que nem sempre foi assim e já houve tempos em que me empenhei com grande profissionalismo a ouvir os meus filhos: o empenho chegou a ser tal que até criei um blog onde registava as gracinhas que eles diziam e os diálogos surrealistas que travávamos. Mas, a prova de que a crise do tempo para ouvir entrou em minha casa, está na escassez de posts no dito de blog.
A minha experiência não era, portanto, digna de ser partilhável com pais dedicados e preocupados que se dão ao trabalho de sair de casa depois do jantar só para ouvirem uma pessoa dura de ouvido falar sobre audição. Anunciava-se um desastre se insistisse pelo caminho sempre perigoso do exemplo. E como a verdade liberta, há que dizer a verdade.
Ora, a verdade nua e crua é que é uma grande chatice dedicar tempo a ouvir crianças pequenas. Dá trabalho, exige paciência, requer resistência física e psicológica ao cansaço e é acima de tudo uma escolha racional. As crianças dizem tudo o que lhes passa pela cabeça, sem filtro, sem lógica, muitas vezes sem contexto, sem fim e sem principio. Acompanhar genuinamente o raciocínio de uma criança ou descobrir o fundamento de uma história que ela conta ou inventa, é um desafio complexo. Claro que elas dizem coisas muito engraçadas e que ouvi-las a descobrir o mundo é uma delicia, mas a verdade é que nada disto está na nossa agenda nem consideramos suficientemente divertido para nos lembrarmos todos os dias.
Ouvir os nossos filhos é uma tarefa, uma obrigação, antes de ser uma vontade. As relações entre pais e filhos, como todas as outras relações humanas, alimentam-se, cultivam-se e constroem-se, e só ouvindo o que os outros têm para dizer é que os conhecemos e ganhamos a sua confiança. Se não ouvirmos, só cultivamos silêncio. Mais do que tempo, é preciso um horário para ouvir os nossos filhos - dez minutos durante o dia, a hora de jantar, um bocadinho antes de se deitarem, o caminho da escola - qualquer um serve. É que os horários cumprem-se, mesmo quando não nos apetece.
Quanto à palestra, sei que, ao contrário das cheias de Lisboa, não se voltará repetir.

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