A justiça da Igreja é iníqua?
Voz da Verdade, 2014.11.16
Pe. Gonçalo Portocarrero de Almada
Muito embora a parábola do juiz iníquo tenha sido proferida com o intuito de recordar «a obrigação de orar sempre, sem desfalecer», é pertinente a sua aplicação à justiça eclesial.
O povo de Deus não é uma massa informe, mas uma sociedade organizada, não só pela estrutura hierárquica que lhe é essencial e que tem, sobretudo, uma razão de serviço, mas também pelos direitos e deveres fundamentais de todos os fiéis. Graças ao Concílio Vaticano II, o novo direito da Igreja reconhece, como seu princípio fundamental, a igualdade de todos os cristãos e a sua universal aptidão para a plenitude da vida cristã. Do mesmo modo como o chefe de Estado não é mais português do que qualquer outro cidadão, o Papa também não é mais cristão do que qualquer outro baptizado. Todos, na Igreja, gozam efectivamente dos direitos e deveres dos fiéis, que a ninguém podem ser negados.
A Igreja não é uma propriedade eclesiástica, mas a casa comum de todos os baptizados. Os pastores têm a missão de pregar a Palavra de Deus, administrar os sacramentos e governar as estruturas eclesiais, de acordo com o ordenamento canónico. Nenhum ministro pode, por absurda hipótese, negar-se a dar a comunhão, ou a confessar um fiel devidamente habilitado para o efeito. O leigo que pretende contrair matrimónio, ou que quer o baptismo para um seu filho menor, não pede um favor, mas exerce um direito. Embora, por delicadeza, o cristão o peça, na realidade não está a solicitar uma benesse, mas a fazer legítimo uso de uma sua prerrogativa, que não lhe pode ser negada sem justa causa.
Jesus Cristo, que não redigiu nenhum Código de Direito Canónico, não só ratificou, expressa e formalmente, o decálogo, como ainda prescreveu o seu pleno cumprimento e lhe acrescentou um novo preceito: o mandamento novo do seu amor. De uma Igreja sem lei resultaria um regime de pastores-proprietários das almas, que reduziriam os fiéis a meros súbditos da sua prepotência. Para impedir uma tal monstruosidade, o direito canónico institucionalizou o modelo que tem em Cristo o seu fundamento: a pirâmide do poder eclesial é uma estrutura invertida, na medida em que, quem está no topo, é o servo dos servos de Deus.
Em boa hora, portanto, o Papa Francisco recordou, no passado dia 5 de Novembro, num curso promovido pelo Tribunal da Rota Romana, que não é aceitável que os processos de nulidade matrimonial sejam excessivamente demorados, nem tão custosos que alguns fiéis não tenham acesso à justiça eclesial.
Que um cristão, que já passou pela dolorosa experiência de um fracasso matrimonial, tenha que aguardar, anos a fio, para saber se o seu casamento é, ou não, válido, é uma clamorosa injustiça. Como o Papa Francisco recordou, a Igreja «tem que fazer justiça e dizer: 'sim, é verdade, o teu casamento é nulo. Não, o casamento é válido'. Mas é justo dizê-lo».
Que um fiel, que não tem uma situação económica desafogada, se veja, por isso, privado de aceder aos tribunais eclesiásticos, é um escândalo que brada aos céus. «A Igreja é tão generosa que pode fazer justiça gratuitamente» – assegurou o Santo Padre – «como gratuitamente fomos perdoados por Jesus Cristo».
O juiz da parábola não era iníquo por decidir mal, em cujo caso a pobre viúva não o importunaria, mas porque – seria nosso conterrâneo?! – «durante muito tempo» atrasou o julgamento. A justiça da Igreja não pode ser cara, nem demorada, porque se não é acessível a todos os fiéis, nem célere, é, mesmo que decida com razão, iníqua.
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